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Crítica | Nazarin

por Luiz Santiago
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Imagine um espectador que nunca tivesse visto um filme de Luis Buñuel, apenas tivesse ouvido falar de sua iconoclastia, de seu desprezo às religiões, críticas ferrenhas à igreja católica e seus cargos de elite. Agora imagine este mesmo espectador assistindo Nazarin como introdução à obra do cineasta aragonês. Definitivamente ele iria achar que tudo o que se falou a respeito do “herege Buñuel” foi uma brincadeira de mal gosto.

Nazarin é a adaptação do romance homônimo de Benito Perez Galdós, e conta a história de um padre humilde que guarda voto de pobreza e tem uma postura avessa a todas as facilidades e mordomias que os párocos locais possuem. Sua bondade, fé e modo de vida se assemelham bastante aos de Jesus, incluindo os milagres que lhe atribuem, a peregrinação e as humilhações sofridas. Nazarin se afasta, à primeira vista, da postura comum de Buñuel em relação à igreja católica. O escritor Julio Cortázar chegou a dizer que o filme parecia ter sido pago pelo Vaticano. Independente de tudo isso, Nazarin pode ser considerado o primeiro e único filme religioso de Buñuel, não sem críticas, mas com outro foco crítico: a caridade, a fé e o relacionamento da sociedade com a religião.

Enquanto vemos ataques ácidos do diretor à igreja em outras de suas obras como A Idade do Ouro, Viridiana e A Via Láctea, percebemos que em Nazarin ele ironiza a respeito da possessão demoníaca, critica o verdadeiro motor da beatice, contrasta a vida pobre de um verdadeiro cristão com a vida dos padres que andam de mãos dadas com o poder opressor de juízes e coronéis e interroga sobre o altruísmo cristão e a operação de milagres. Não é um filme-escândalo ou herege, como foram classificadas as outras abordagens religiosas do cineasta, mas é um filme crítico, tanto à religião quanto à sociedade.

Um outro fator bastante forte e que escapa a uma boa parte dos espectadores é que embora o protagonista seja um religioso, ele é avesso à instituição religiosa, que vê nele um problema de grande ordem. Nazarin não é como Simão do Deserto, um pregador independente que acaba cedendo às tentações seculares, mesmo que com um forte sentimento de culpa. Ele é um cristão penitente, obediente às leis de Deus e dos homens, e com discurso firme na defesa de suas ideias ou exposição de seus sentimentos, como vemos na cena da prisão, onde que ele perdoa seus companheiros de cela mas deixa claro que pela primeira vez na vida encontrava dificuldades para isso.

A própria peregrinação de Nazarin e as duas mulheres que o acompanha, uma possível apaixonada e outra geralmente comparada a Maria Madalena, é um dedo na ferida da chamada “motivação religiosa” ou “chamado de Deus”, o que nos faz voltar ao discurso e problematização da fé. O protagonista é visivelmente um homem que crê, mas as mulheres que o seguem, apesar da aparente devoção, são uma espécie de papagaio teórico, repetindo a todos a santidade de Nazarin, seus milagres e bençãos, enquanto elas próprias ainda não encontraram o caminho religioso que tanto pregam. O grupo caminha junto mas está ideologicamente separado. Ora, não é assim com uma gorda parcela dos cristãos de hoje? Repetem rezas, anunciam milagres, andam com “O Nazareno”, mas suas preocupações, atos de todos os dias e opinião sobre o próximo são contrárias à cristandade. Sua fé se confunde com interesses pessoais, financeiros, políticos, e para isso fazem uso da doutrina, de suas instituições ou interpretações forçadas de passagens bíblicas a fim de defender ou dar suporte ao indefensável. Eis aí a verdadeira heresia. O anti-cristão usando de um anti-cristianismo para fingir que ama a Deus sobre algumas coisas e provar que odeia muitos de seus próximos… talvez como a ele mesmo.

Francisco Rabal dá vida ao protagonista do filme e realiza uma atuação maravilhosa na pele da Nazarin. O ator consegue ao mesmo tempo criar um personagem de porte marcante e humilde, passando de uma comovente docilidade inicial para uma insatisfação quase desesperada ao cabo, porém, sem nenhum indício de renúncia da fé. O abacaxi entra aí como uma espécie de afirmação da persona de Nazarin, um presente que pode ser uma iluminação, com aquela bela coroa espinhenta na cabeça, um símbolo do Cristo, talvez – perceba que o sentido figurado que o fruto tem para nós, brasileiros, é diferente.

Buñuel afirma aqui o seu descontentamento para com a instituição religiosa e seus componentes hierárquicos, mas assume, inclusive em seu livro Meu Último Suspiro, o afeto que tem pelo personagem de Nazarin, o homem de fé verdadeira e não de religiosidade hipócrita. Mesmo que não respeite a igreja, o diretor deixa claro que repeita os que tem fé, não uma fé fabricada, que só vem à tona quando há alguém olhando; mas uma fé realmente pessoal, firme nas convicções do indivíduo com seu Deus e que é claramente vista no modo de vida da pessoa.

Além dessa discussão, Buñuel fala sobre a caridade, filmando em aldeias pobres do México, misturando o comportamento das pessoas com o suas crenças. Nesse experimento, vemos velhinhas com rosários e homens com crucifixo no pescoço agindo como algozes… Quem são as pessoas por trás de sua máscara religiosa, da eucaristia, das campanhas de oração e louvores? Ao problematizar a caridade ou o carinho e consideração fraterna ao próximo o diretor nos incita a perguntar sobre a humildade e pobreza das Ordens e correntes religiosas ou fanáticas que adotam um comportamento em tese humilde, mas na prática, ostensivo, clamando por atenção.

Nazarin não é um filme-parceria com o Vaticano ou a defesa de tudo o que Buñuel sempre criticou em sua obra pregressa ou posterior. Na verdade, o filme é uma sutil agulhada na alma da igreja e dos princípios básicos do cristianismo, um toque de mestre que consegue colocar a fé em um lugar separado do departamento religioso, algo que, para a igreja, é motivo de alto temor. Mas há quem veja em Nazarin um Buñuel rendido e de mãos dadas com a Cruz. Há quem faça troça do filme, classificando-o como um exercício de beatice sem propósito do cineasta. Mas Nazarin é um filme-incômodo e não apenas do modo óbvio, como querem pensar. É preciso maior atenção para compreender isso.

  • Crítica originalmente publicada em 9 de junho de 2013. Revisada para republicação em 5/07/2020, em comemoração aos 120 anos de nascimento do diretor e da elaboração da versão definitiva de seu Especial aqui no Plano Crítico.

Nazarin – México, 1959
Direção: Luis Buñuel
Roteiro: Julio Alejandro, Luis Buñuel, Emilio Carballido (adaptado da obra de Benito Pérez Galdós)
Elenco: Marga López, Francisco Rabal, Rita Macedo, Ignacio López Tarso, Ofelia Guilmáin, Luis Aceves Castañeda, Noé Murayama, Rosenda Monteros, Jesús Fernández, Ada Carrasco
Duração: 94 min.

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