Enquanto os estadunidenses adoram sangue e assassinatos, as narrativas francesas gostam de apostar em longos debates filosóficos e deixar as coisas mais cifradas para a interpretação dos espectadores. Isso não é uma regra geral, mas pode ser aplicado ao olharmos comparativamente O Preço da Traição, drama com toques de suspense, protagonizado por Julianne Moore, Amanda Seyfried e Liam Neeson, e Nathalie X, trama mais subjetiva e com foco no erotismo das situações apresentadas, ponto de partida para o conteúdo americano interessante, mas dirigido de maneira vulgar e com soluções mais fáceis em seu desfecho. Em ambas as estruturas dramáticas, temos uma mulher enganada pelo marido após anos de um casamento aparentemente equilibrado. Confusa diante dos novos obstáculos diante do relacionamento, elas encomendam uma prostituta para seduzir o cônjuge e assim, estabelecer uma conexão para melhor entender não apenas a melhor maneira de proceder face aos conflitos, mas compreender a si mesma.
Em linhas gerais, enquanto o europeu aposta em sutilezas e diálogos mais interessantes, o “americano” reforça o desequilíbrio emocional de sua femme fatale e parte para a violência física, além da psicológica. É um traço cultural e, obviamente, não desmerece as escolhas da equipe presente na produção refilmada. Os problemas do filme vão além dessas soluções e na balança, a versão inicial de 2003, dirigida por Anne Fontaine, apresenta um enredo mais envolvente e uma condução mais equilibrada. Guiada pelo roteiro que também assina, ao lado de Jacques Fieschi, Phillipe Blasband e François-Olivier Rosseau, a cineasta nos faz adentrar na vida da sofisticada e bela Catherine (Fanny Ardant), uma jovem senhora ainda muito bonita, elegante, bem-sucedida profissionalmente, mas com uma crise no casamento, deflagrada após descobrir que Bernard (Gerard Depardieu), a traiu com uma mulher durante uma viagem. A revelação só se escancara depois que a esposa, insistentemente, questiona o marido sobre o celular perdido, encontrado pela mesma e, num impulso de curiosidade, verificado.
Uma mensagem de voz a inquieta. Dentre as mensagens, uma é desconfortante. Quem é a mulher que agradece pela noite anterior e fala da intensidade do envolvimento sexual de seu marido? Essa é uma pergunta que catalisa as ansiedades de Catherine e a leva ao espiral insano de obsessão, mistério e mentiras, além de pitadas generosas de fetichismo, coisa que o cinema fora do eixo europeu teria dificuldades em abordar, pois mesmo com suas doses cavalares de violência, o sistema de produção e boa parte dos espectadores estadunidenses ainda é muito hipócrita e conservador. E não sou eu apenas que afirmo isso, Paul Verhoeven, diretor do clássico moderno Instinto Selvagem, deixou essa afirmação como mensagem num badalado festival de cinema recente. Ao buscar respostas, a esposa encontra uma jovem garota que utilizará o pseudônimo Nathalie (Emannuelle Beart), isca para um perigoso jogo erótico que criará um triângulo amoroso complexo, cruelmente real ou talvez parcialmente imaginado.
Interessante de observar no desenvolvimento do filme é que há um alvo neste jogo criado por Catherine, atordoada e com duvidas e inseguranças sobre suas crenças no relacionamento que levava e em si mesma, em sua capacidade de ser atrativa e interessante ao olhar masculino. François (Wladimir Yordanoff), por exemplo, deixa a entender o tempo inteiro que na primeira chance concedida, a preencheria de paixão. Mas, como amigo da família, se mantém sempre comedido. Neste projeto aparentemente bizarro aos olhos de nossa sociedade supostamente retilínea no que diz respeito aos comportamentos moldados entre o que é certo e o que é errado, Nathalie X nos mostra que na gamificação de Catherine, talvez a isca esteja manipulando não apenas o seu marido, mas a própria contratante.
E, é neste viés que a narrativa dialoga tangencialmente com o tema da mulher fatal, arquétipo perigoso e ambíguo, responsável por utilizar a sexualidade como ferramenta para a derrocada moral e psicológica dos que gravitam ao seu redor. Trajada pelos figurinos de Pascaline Chavanne, a personagem de Emmanuelle Beart desloca-se sensualmente pelos cenários do design de produção de Michel Barthélemy, espaços com uso abrangente de vermelho, tons amadeirados, iluminados e captados pela direção de fotografia de Jean-Marc Fabre, setor que colabora com a construção da atmosfera sensual e de sexualidade pulsante ao longo dos relatos ousados da contratada que narra para Catherine, detalhes sórdidos dos momentos sexuais com Bernard, informações que deixam a esposa assombrada pelo adultério com um furor interno, pois a cada investida de Nathalie, os pormenores do desempenho de seu marido em outra cama impactam e tornam-se desconfortantes, mas também a preenchem de curiosidade.
Com trilha sonora discreta de Michael Nyman, Nathalie X nos conduz a um final calmo, sociável, de harmonização dos envolvidos, sem precisar de agitações para tornar o processo evolutivo dos personagens interessante. É um filme que tinha tudo para ser letárgico, mas não é. Os diálogos entre as duas mulheres é mais envolvente que qualquer cena de ação cheia de efeito e ameaças de morte, tal como foi escolhido em sua refilmagem, já mencionada durante a abertura da crítica.
Nathalie X (Nathalie… | França, 2003)
Direção: Anne Fontaine
Roteiro: Jacques Fieschi, Anne Fontaine, François-Olivier Rousseau, Philippe Blasband
Elenco: Fanny Ardant, Emmanuelle Béart, Gérard Depardieu, Wladimir Yordanoff, Judith Magre, Rodolphe Pauly, Évelyne Dandry, Christian Päffgen, Aurore Auteuil, Idit Cebula, Sasha Rucavina
Duração: 106 minutos