É indiscutível que o filme de Mark Romanek se ampara numa profunda reflexão melancólica a respeito da transitoriedade e da inevitabilidade do curso de uma vida que tem prazo para acabar. Baseando-se em construções alegóricas de enredo, o cineasta, dirigindo o roteiro de Alex Garland – e que adapta, por sua vez, o romance de nome homônimo de Kazuo Ishiguro -, explora, por meio de uma perspectiva utópico-distópica, o gênero humano na sua condição de finitude. Embora o longa-metragem tenha ares de ficção científica, e proponha uma guinada para tal, o que encontramos é, sem dúvida, um drama romântico com feições trágicas.
Vivendo num internato em cujo mistério é a marca do ambiente, três amigos, Cathy H (Carey Mulligan), Ruth (Keira Knightley) e Tommy (Andrew Garfield), vivenciam, juntos, a passagem da infância para a juventude. Com total controle sobre os alunos, rotina rígida, alimentação pontual e hábitos saudáveis obrigatórios, o colégio parece moldar um determinado tipo de humano. Não sabemos o que estaria por trás de tamanho domínio. Quando em dada altura envolvem-se num triângulo amoroso, os amigos descobrem que, embora se amem, tudo está fadado ao fim devido a um propósito maior que tem o colégio a respeito de suas vidas. Amor e urgência são tópicos que se encontram no desenvolvimento da película.
Vamos observar aos poucos que o segredo da escola é muito mais destrutivo do que imaginamos, contudo, o seu “denso compromisso ético” nos coloca numa linha tênue a respeito do julgamento daquilo que é certo e errado. Como nos comportaríamos ao descobrir que o colégio constrói sujeitos para serem doadores de órgãos? Após a revelação da Miss Lucy (Sally Hawkins), tudo fica explícito e adquire sentido, desde as razões da feitura de um seminário inteiro só porque foram encontrados cigarros aos arredores do colégio ao cuidado com a saúde, mantendo os órgãos em bom estado.
A descoberta, então, desse primeiro plot não afeta em nada o desenrolar da película. É curioso o fato de que o cineasta faz dessa informação desconcertante algo indiferente. Isto é, esse dado, quando descoberto pelos alunos, não causa alvoroço, tampouco muda algo na relação entre os personagens. Ser criado como um robô para ser doador é algo aceito por todos e sem muito questionamento. Nesse ponto, o cineasta trabalha com uma vertente moderna do mito clássico da caverna num estilo muito próximo ao de Yorgos Lanthimos, sobretudo em um de seus trabalhos mais incômodos – Dente Canino.
Há toda uma formação que busca alienar os alunos com a finalidade de construir um humano capaz de se doar pelo outro. Por isso não se furta a debater ideias de alma, bondade e destino. No momento em que se busca questionar tal processo, um argumento de ordem ética é jogado à mesa: salvar as milhares de pessoas que sofrem das mais variadas e agressivas doenças. Ora, não é o bastante? É claro que há um paradoxo por aqui: ao mesmo tempo em que se preza pela manutenção dos instintos de humanidade dos alunos em prol do Outro, tornando-se doador, a humanidade desses mesmos doadores é retirada mediante uma brutal pedagogia destrutiva.
A película opta por fazer uma discussão importante nas entrelinhas do seu enredo, nos levando a inferir, a todo o tempo, se é moralmente justo que existam seres humanos artificialmente adaptados a, sem se importarem, salvar a vida de outras pessoas que estão à beira da morte. Complexifica-se o debate ao trazer em cena personagens que não se incomodam com o fato de terem nascido para serem doadores, e inclusive querem isso.
Aliás, não é que sempre quiseram isso, mas é que desde muito cedo esses sujeitos se veem destinados e treinados a isso, de modo que essa missão salvadora torna-se uma meta de vida. Imediatamente após o fim da película, para quem não leu o romance, surge o questionamento a respeito da família desses personagens e suas vidas antes de entrar no internato. Nota-se logo que esse dado não faz falta para a compreensão da ideia do filme e figura mesmo como um aspecto positivo do ponto de vista da indagação, isto é, de nos fazer elaborar hipóteses a respeito do entorno que os rodeia.
Chama a atenção o drama-romântico retirado daí. O cineasta consegue trazer uma urgência própria do sentimento juvenil de paixão ao mesmo tempo em que, delicado, o amor se converte num afeto extremamente conturbado e melancólico no interior dessa intriga. Gosto da montagem da última cena em que um vazio paisagístico é exposto, com apenas uma árvore no meio do nada, símbolo de renascimento, alegoria complexa a respeito da vida. Sendo importante que a imagem se conecte à ideia de filme, a organização cênica desse momento expõe, no meio da reflexão de Kathy H, um espelho do vazio interior quando já não há mais ninguém ali com ela, nem Tommy, nem Ruth, que já concluíram seus deveres. É uma mistura entre beleza e tristeza quando essa epifania revela, impreterivelmente, que não só a vida, mas tudo o que a compõe irá acabar.
Vou propor, então, que deixemos a leitura sci-fi de lado num exercício perigoso de análise e interpretação. Com isso, obtemos, como resultado de um todo, a grande metáfora que enquadra e eleva essa película ao status de um coming-of-age ideal: a tranquilidade que representa o internato (indoor) é rompida com a exposição outdoor desses personagens que, crescidos, precisam encarar a vida como ela é. O mundo lá fora é uma realidade nova, incerta e portanto temível e que necessita de ser enfrentada. Parte do crescimento é isso: refazer a si mesmo, ainda que seja um processo que machuque à beça – e mesmo não querendo fazê-lo, somos obrigados a isso. Mais do que o encontro, talvez o desencontro seja o que mais contribui, positiva e negativamente, para a construção daquilo que somos destinados a ser. Tornar-se aquilo que se é: esse é o drama que marca o cinema de formação e que se apresenta aqui de modo sutil, alegórico, mas consistente.
Não Me Abandone Jamais (Never Let Me Go, Reino Unido, 2010)
Direção: Mark Romanek
Roteiro: Alex Garland (baseado no romance de nome homônimo de Kazuo Ishiguro)
Elenco: Carey Mulligan, Isobel Meikle-Small, Keira Knightley, Ella Purnell, Andrew Garfield, Charlie Rowe, Sally Hawkins, Charlotte Rampling, Nathalie Richard, Domhnall Gleeson, Andrea Riseboroug
Duração: 103 min.