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Crítica | Não Diga Nada

A tortura do silêncio.

por Ritter Fan
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No dia 1º de dezembro de 1972, Jean McConville, uma viúva de 38 anos e mãe de 10 filhos, foi levada por homens e mulheres mascarados do pequeno apartamento do conjunto habitacional que vivia em Belfast, na Irlanda do Norte, e nunca mais foi vista. É com essa potente sequência que Não Diga Nada, série ficcional baseada em livro investigativo de Patrick Radden Keefe, começa e ela permanece no fundo da mente do espectador como uma aterradora assombração que clama por esclarecimento enquanto a complexa narrativa desenvolvida por Joshua Zetumer e que se passa ao longo de quase todo o longo período do chamado Conflito na Irlanda do Norte, mais conhecido por lá como The Troubles, entre o final dos anos 60 e 1998 e que resultou em um sem-número de mortes.

Apesar de dar a entender que a série será sobre o que aconteceu com Jean McConville (Judith Roddy), o que Zetumer faz é uma costura narrativa muito inteligente que parte desse incidente, mas foca primordialmente nas irmãs Dolours e Marian Price (respectivamente Lola Petticrew e Hazel Doupe em suas versões jovens) que começam acreditando em protestos pacíficos contra a absorção dos irlandeses ao Império Britânico, um processo histórico que remonta há séculos, mas que acabam tornando-se verdadeiros símbolos da luta armada contra a opressão. A história, porém, também aborda, subsidiariamente, dois personagens importantes no comando de uma facção do Exército Republicano Irlandês (IRA), o líder Gerry Adams (Josh Finan) e seu braço direito Brendan “Dark” Hughes (Anthony Boyle), que, na prática, são os chefes diretos das irmãs, ainda que todos os episódios em que Gerry apareça, haja uma ressalva por escrito ao final afirmando que ele “sempre negou ter sido um membro do IRA ou ter participado em qualquer violência relacionada ao IRA”, certamente algo que foi acordado entre advogados para evitar repercussões judiciais.

Além disso, há o uso de um engenhoso enquadramento da história por meio das sessões de entrevistas que o autor do livro em que a série se baseou teve tanto com Dolours quanto com Brendan (em suas versões mais velhas, vividas por Maxine Peake e Tom Vaughan-Lawlor), dentre outros, como parte do chamado Projeto Belfast, encabeçado pela Bosto College, a partir de 2000. Esse artifício não só ajuda o espectador a navegar pela complexidade do assunto, como cria um tom documental que torna a série ainda mais forte naquilo que retrata, ou seja, ao mesmo tempo uma causa em princípio justa sendo levada adiante por pessoas que se sentem usurpadas de suas terras e a própria organização que fazem parte cometendo atos horríveis e indesculpáveis contra seu próprio povo no processo. De forma a avançar na narrativa, Zetumer acrescenta outra camada que, em um primeiro momento, pode parecer não combinar com a natureza da própria série, que é a estrutura de “ação da semana”, se é que posso chamar assim, em que vemos essencialmente recriações das missões de Dolours e Marian como membras do IRA.

O resultado dessa combinação de estilos narrativos poderia resultar em uma obra confusa em mãos menos hábeis, mas a equipe de diretores e roteiristas de Não Diga Nada parece ter conseguido chegar a uma fórmula mágica que mistura à perfeição concisão com exposição, duas características normalmente antitéticas, mas que, aqui, têm suas forças opostas harmonizadas em um drama histórico assustador e também cativante que trafega sem cambalear pelo fio da navalha entre o reconhecimento e a condenação das ações do IRA, entre o remorso que alguns sentem pelo que fizeram e as atitudes de outros que simplesmente negam seu passado. E o desaparecimento de Jean McConville, como disse acima, nunca é esquecido. Muito ao contrário, o fantasma da mulher brutalmente retirada de seu lar diante de seus filhos é constantemente mantido como uma assombração que perpassa tudo o que vemos, seja no passado, seja no presente e que funciona tanto como força motriz quanto como o proverbial mistério que o espectador deseja que seja resolvido.

As escalações de Lola Petticrew e de Hazel Doupe como as versões jovens das irmãs Price foram muito inspiradas, vale salientar, com ambas revelando, sem muito mostrar, não apenas a conexão umbilical que elas têm, como, também, suas visões diferentes sobre o IRA e suas funções dentro da organização. Ambas lutam não só pela causa, mas também para trazer as mulheres para a efetiva luta armada e não como “adereços” que sequer podem se sentar à mesa onde as decisões são tomadas, mas cada uma delas tem uma visão bem marcada sobre como fazer isso, como dois lados de uma mesma moeda. E é perfeitamente sensível como a cruel engrenagem da violência cobra seus dividendos das personagens, com as atrizes, com a ajuda de um estupendo e sutil trabalho de maquiagem, aos poucos perdendo a vitalidade e a juventude, culminando com o brutal e excruciante episódio focado exclusivamente nelas (mais em Dolours) quando na prisão.

Não Diga Nada é uma minissérie que, provavelmente, não chamará muito a atenção diante da vasta oferta de obras que se tem por aí, mas ela merece ser lembrada como mais uma pérola do FX em um ano em que a produtora parece estar acertando todas. Há muito o que absorver da obra de Joshua Zetumer e há muito o que ponderar sobre a opressão levada a cabo não pelos opressores, mas sim pelos oprimidos. Não Diga Nada diz muito. Basta querermos ouvir.

Não Diga Nada (Say Nothing – EUA, 14 de novembro de 2024)
Data de lançamento no Brasil: 11 de dezembro de 2024
Desenvolvimento: Joshua Zetumer (baseado em livro de Patrick Radden Keefe)
Direção: Michael Lennox, Mary Nighy, Anthony Byrne, Alice Seabright
Roteiro: Joshua Zetumer, Clare Barron, Joe Murtagh, Joe Murtagh, Kirsten Sheridan
Elenco: Lola Petticrew, Maxine Peake, Hazel Doupe, Helen Behan, Anthony Boyle, Tom Vaughan-Lawlor, Josh Finan, Michael Colgan, Seamus O’Hara, Kerri Quinn, Stuart Graham, Rory Kinnear, Amy Molloy, Frank Blake, Emma Canning, Adam Best, Martin McCann, Emily Healy, Laura Donnelly, Isaac Heslip, Judith Roddy, Damien Molony
Duração: 399 min. (nove episódios)

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