Resultado de uma iniciativa de revitalização nas produções do Shanghai Animation Film Studio, Naia Contra o Rei dos Dragões (1979) parte de um início discreto, mas conquista o espectador à medida que avança, surpreendendo pelo desfecho trágico e pela maturidade com que temas humanamente densos se entrelaçam à fantasia e à rica mitologia chinesa. Aqui, o contraste vibrante das cores e a elegância dos movimentos do protagonista são elementos visuais marcantes, e, apesar das limitações técnicas da animação (sobre as quais falarei mais adiante), a beleza geral e a expressividade de Nezha fazem a experiência valer a pena.
Das limitações técnicas, as piores são a sincronização labial descompassada e os movimentos travados, aliados a um mal aproveitamento dos cenários potencialmente enriquecedores das ações do protagonista. Mesmo assim, essas falhas não comprometem a nossa experiência como um todo. Depois de um início lento e demasiadamente simples, o espectador é presenteado com antagonismos mitológicos bem trabalhados e uma coreografia envolvente de elementos tradicionais: fitas vermelhas dançantes, dragões elementares de diferentes cores, arcos dourados e flamejantes que flutuam, batalhas que dialogam com estados da natureza, deuses, imortais, flores de lótus e momentos de crueldade e profundidade psicológica que surpreendem, sobretudo, pelo fato de estarem presentes num filme infantil dos anos 70.
A estrutura narrativa é simples e direta. No roteiro de Zhonglin Xu, os dragões são apresentados como vilões logo no início, enquanto se desdobra a trajetória de Nezha, marcada por um nascimento incomum e pela presença de um pai frio e distante, que entrega o menino aos ensinamentos de um mestre que logo desaparece, deixando-o aprender tudo por conta própria. Posteriormente, o mesmo pai assume o papel de controlador das atitudes do filho (as divergências entre eles, na verdade, são parte essencial da narrativa), mas isso não tem resultado algum, e leva-o a optar pelo sacrifício de Nezha para aplacar a fúria dos dragões e preservar seu povo, numa lógica em que “uma vida vale por toda uma população”. A produção não poupa o espectador do impacto de suas imagens: Nezha é tratado com um misto de comportamento infantil e grande impulsividade combativa e provocadora, chegando a matar o filho do Rei dos Dragões e tirar-lhe o tendão, a fim de oferecer ao pai como presente. Além disso, a cena da tragédia, com ele levando a lâmina da espada ao pescoço, é, ao mesmo tempo, tocante e chocante, elevando a atmosfera do momento onde acontece.
O suicídio de Nezha pode ser entendimento de diversas formas, tanto em relação à autoridade, quanto em reparação de males que ele, mesmo com boas intenções, acabou cometendo. Além disso, o sangue vertido na frente do pai, num contexto de luta política (com uma linha narrativa de vingança e justiça sendo disputada) mostra a libertação de um estágio da vida do menino, que depois renasce, da flor de lótus, sem ter obrigação alguma para com a autoridade paterna. Seu ato aplacou a ira dos dragões, salvou o povo da cidade onde morava, impediu que o pai agisse de maneira ainda pior do que já fizera, no processo de educação, e criou um direcionamento muito bacana para o último ato, que é lamentavelmente rápido, mas com boas cenas de ação.
A submissão às autoridades ameaçadoras — representadas pelos dragões que regulam chuvas e neves — reflete a realidade de diversos países (incluindo a China) no final dos anos 1970. As demandas impiedosas impostas à população, exemplificadas pelo Rei dos Dragões, que exige carne infantil; e as punições arbitrárias, manifestadas por secas e inundações, delineiam um cenário de opressão social que só é rompido pela intervenção de Nezha. Ao desafiar esse imponente “dragão-sistema”, ele se transforma em mártir e, paradoxalmente, renasce, simbolizando a resistência (ideológica, portanto, imortal) e as ações de combate a um Estado, a um sistema econômico, a um poder abusivo. Depois de ser absorvido pela situação, a luta do indivíduo faz com que ele ganhe um novo “corpo ideal”, tornando-se lança e escudo nas batalhas dos vivos contra aqueles que veem nas massas um joguete manipulável ao seu bel-prazer lucrativo.
Naia Contra o Rei dos Dragões (哪吒闹海 / Nezha nao hai / Nezha Conquers the Dragon King) — China, 1979
Direção: Shuchen Wang, Jingda Xu, Ding Xian Yan
Roteiro: Zhonglin Xu
Elenco: Ke Bi, Banjô Ginga, Daisuke Gôri, Junko Hori, Ichirô Nagai, Masako Nozawa, Nachi Nozawa, Mari Okamoto, Tomiko Suzuki, Norio Wakamoto, Chikao Ôtsuka
Duração: 60 min.