De tempos em tempos temos a sorte de colocar as mãos em um quadrinho que nos surpreende, encanta, e traz algo diferente para a nossa percepção da Nona Arte, o que sempre resulta numa experiência inesquecível, seja para o bem, seja para o mal. Nesta minissérie francesa publicada em duas partes, entre 2019 e 2021, temos uma representação visual estonteante para um “caso secreto” de Sherlock Holmes, intitulado O Caso do Bilhete Escandaloso. A obra tem roteiro de Cyril Liéron e Benoit Dahan, com todo o projeto artístico concebido por Dahan, que representa em sua arte a visão que a série de Steven Moffat e Mark Gatiss esquematizou para a atividade mental de Holmes, quando está pensando na resolução de um mistério. Ou seja, aquela ideia de “o que se passa na cabeça dele?” está representada neste volume por um rigoroso projeto de diagramação de páginas, seguindo de perto uma pista e conectando-a aos vários espaços mentais no cérebro do grande detetive.
Já na abertura da história, somos brindados com uma estrutura estética que desafia o nosso olhar, fazendo com que fiquemos um tempo maior em cada página, observando os detalhes, as formas sugeridas (porque aqui a arte funciona naquilo que representa, e no formato de desenhos internos, insinuando algo a mais) e o próprio processo de construção do caso por parte de Holmes. O roteiro propositalmente começa com várias possibilidades de investigação, fazendo com que Watson filtre uma porção de coisas a fim de tirar Holmes de seu vício em ópio e cocaína, ao qual ele recorre toda vez que não tem os estímulos necessários para se manter ativo, distraído e utilizando todo o seu potencial mental. Esse status de saúde do personagem acaba fazendo sentido no escopo da história, pois o que vemos nas páginas desse quadrinho, a partir do momento em que a investigação se inicia, é uma febril atividade intelectual, deixando Holmes completamente absorto.
A aventura tem um enredo interessante e discute um problema social que é um espelho de debates intensos em nossos tempos. O Império Britânico ganhou muito dinheiro, incentivou e encabeçou o tráfico de drogas na Ásia (o ópio; na China e na Índia) e via como espetáculo aceitável — assim como diversas outras nações ocidentais –, a exibição de seres humanos de outras etnias, com deficiências físicas ou mentais em espetáculos circenses e derivados, os chamados “freaks“. Racismo e eugenia são discutidos aqui a partir do ponto de vista do vilão, que tinha um impulso correto (o ódio à segregação, ao preconceito dos britânicos), mas que acabou utilizando de diversos meios criminosos para se fazer ouvir. Mais uma vez, um antagonista defendendo uma boa causa por meios questionáveis. É por isso que Holmes demora um pouco para encontrar o caminho correto e colher as pistas deste mistério tão incomum.
Mesmo que eu tenha problemas com a grande quantidade de texto na explicação final, dada pelo vilão sobre como tudo aconteceu, não consigo ver essa obra como um quadrinho inferior a excelente. Claro que o aspecto visual é o maior atrativo do volume, mas há uma conjunção aqui, que deve ser levada em consideração. A introdução e o desenvolvimento do mistério foram pensados de forma muito cuidadosa e colocados nas páginas para nos impressionar a cada novo quadrinho. Na Mente de Sherlock Holmes nos apresenta uma forma diferente de ler HQs, tornando o andamento da trama instigante e constantemente interativo, fornecendo muito mais pistas para o leitor e dando detalhes através de imagens e pequenos títulos em livros e bilhetes. Uma viagem pela mente de um grande detetive da literatura que faz jus àquilo que promete entregar.
Na Mente de Sherlock Holmes (Dans La Tête de Sherlock Holmes: L’Affaire du Ticket Scandaleux) — França, 2019 e 2021
Roteiro: Cyril Liéron, Benoit Dahan
Arte: Benoit Dahan
Cores: Benoit Dahan
Editora original: Ankama Éditions (2019 e 2021: Dois Tomos)
No Brasil: Pipoca & Nanquin (Fevereiro de 2023)
Tradução: Fernando Paz
108 páginas