- Há spoilers. Leiam, aqui, as demais críticas.
A 3ª temporada de Mythic Quest, sitcom do mundo dos games da Apple TV+, começou com dois episódios lançados simultaneamente que, aqui, ganham críticas separadas. Confiram:
3X01
Across the Universe
A Lionsgate e F. Murray Abraham anunciaram que o ator não mais voltaria para Mythic Quest em seu sensacional papel do escritor C.W. Longbottom sem que as razões por trás da decisão fossem explicitadas. Mesmo que existam explicações específicas para a saída dele – o que, em Hollywood, normalmente significa ou que houve desentendimentos criativos inconciliáveis, ou negociação de cachê que foi por água abaixo ou incompatibilidade de agenda – a grande verdade é que o personagem ganhou um magnífico arco na temporada anterior, com direito à participação especial do saudoso William Hurt, que pode ser encarado como sendo o de encerramento para ele.
E, com isso, o começo da quarta temporada da série teria que lidar, dentre outros assuntos, com sua ausência, mas, sensacionalmente, no lugar de simplesmente tratar a questão de maneira simplista, com uma ou duas linhas de diálogo informando que Longbotton morrera, se aposentara ou qualquer outra coisa nessa linha, Across the Universe gravita ao redor desse assunto. Mais do que isso, o roteiro co-escrito por Megan Ganz, David Hornsby e Rob McElhenney é um perfeito exemplar de como despedir-se respeitosamente de um personagem de série, sem por um momento perder a essência tanto da série como do personagem, e isso sem deixar de ser, ao mesmo tempo, um eficiente episódio de começo de temporada em que o novo status quo dos demais integrantes é apresentado.
O pano de fundo é, portanto, o retorno de Longbottom para o MQ, depois de sua ausência alongada na Europa. Jo não só providenciou a festa no telhado da empresa, como monitora obsessivamente o voo transoceânico do homenageado e, de seu jeito ditatorial, exige que todos estejam presentes, especialmente Rachel e Dana que estão retornando de suas especializações em Berkeley. Dessa maneira, o roteiro faz com que Longbottom permaneça no radar do espectador ao longo de cada segundo de projeção, mesmo que em segundo plano, o que abre espaço para que, em primeiro plano, os demais personagens sejam trabalhados e, de certa forma, reapresentados.
As já citadas Rachel, Dana e Jo são imediata e organicamente inseridas na história usando a referida festa como gancho. David, agora chefe absoluto da MQ, refestela-se em sua posição, tendo uma excelente conversa com Carol, antes diretora de RH, agora diretora de inclusão e diversidade da empresa, que reclama por ela não ter o que fazer. Há muito o que falar no diálogo que os dois têm, com Carol demonstrando sua inquietude sobre um cargo que, para todos os efeitos práticos, só existe no papel e David mostrando uma absoluta clareza de raciocínio ao dizer, muito claramente, que ele também está passando por isso é que a estratégia é fazer o hokey pokey, ou seja, muito barulho que dá a impressão de ação e relevância para substituir a completa inação e irrelevância. São alguns minutos de absoluto brilhantismo em construção de diálogo que faz uma mímica tão perfeita do mundo real que fico impressionado que a produtora tenha deixado o texto aparentemente intacto. Em outras palavras, determinadas posições dentro de corporações são meras fachadas, meros assentos e cargos que são preenchidos para que se possa mostrar que eles existem e somente isso, sem que sua existência gere algo palpável de verdade.
O resultado disso é que Carol recontrata ninguém menos do que Brad Bakshi, ex-diretor de monetização da MQ que fora preso no final do ano anterior e que, tendo sido um prisioneiro exemplar, saiu em condicional em apenas um ano. Para Carol, Brad é a forma de ela matar dois coelhos com uma cajadada só, já que ele não só é uma “pessoa marrom” (ou de ascendência indiana), como, também, um ex-condenado. Na verdade, são três coelhos, pois ele custa barato para a empresa em razão do subsídios governamentais dados a esse tipo de contratação. Em termos narrativos, seu retorno é uma excelente fonte de conflito com David, claro, algo que é indicado aqui, mas que ganha pouco desenvolvimento.
No lado de Ian e Poppy, agora fora da MQ, mas ainda fisicamente no prédio da empresa com sua recém-fundada GrimPop, os dois tentam vender seu revolucionário jogo Hera para outra corporação, obtendo enorme sucesso na empreitada que, claro, gera conflito na dupla. Em um escritório completamente diferente que, como Poppy diz, parece uma nave espacial (e que não tem linhas, a ponto de tudo parecer 2D em um branco envelopador), a programadora, como sempre, arregaça as mangas e trabalha, enquanto Ian é o “pensador” que passa o tempo todo na realidade virtual do Metaverso achando que está fazendo algo de verdade. Não há muita novidade nessa relação deles, mas esse conflito é, diria, essencial para a série, com o roteiro aproveitando para extrair ótimos momentos cômicos entre eles.
E, finalmente, quando tudo converge para a festa de retorno de C.W. Longbottom, vem a revelação, por uma carta dele a David que é lida na frente de todos, que o ele chegara ao fim de sua jornada, tirando sua própria vida ao jogar-se no Grand Canyon dirigindo um Mustang (e sim, a referência a Thelma & Louise é mencionada e é absolutamente perfeito que o personagem, que construiu sua carreira em cima da obra de outros, se vá da mesma forma). E, como se isso não bastasse, demonstrando traços de megalomania, ele providenciou para que suas cinzas fossem colocadas em um satélite que circunda a Terra e que é justamente o que Jo vinha, sem saber, acompanhando via aplicativo, com o momento do fim da leitura “coincidindo” com a passagem de Longbottom por sobre a cabeça de todos ali.
É ou não é genial a maneira como o personagem se despede da série? Não é sequer necessário que Abraham apareça sequer por um segundo, mesmo lendo em off a carta, pois sua presença é sentida constantemente, do começo ao fim. Across the Universe, assim, torna-se um dos melhores começos de temporada que já vi em todos esses anos de indústria vital, uma verdadeira obra-prima na forma como mantém-se fiel aos alicerces de todos os personagens, inclusive e especialmente aquele que se despede da série.
3X02
Partners
Cumprida exemplarmente a tarefa de dar cabo de um personagem inesquecível e de iniciar a terceira temporada, Partners, o segundo episódio, vem para aprofundar os conflitos internos tanto na GrimPop quanto da Mythic Quest, servindo como o que talvez possamos chamar da efetiva história que a temporada pretende contar. Começando com um hilário prólogo de Ian brincan… aham… trabalhando na realidade virtual e tropeçando em Poppy que realmente está com a mão na massa desenvolvendo seu jogo Hera, o que a deixa exasperada, logo vemos, mais uma vez, as manifestações de suas personalidades quase que completamente inconciliáveis.
Mas o problema não é apenas Ian e sua mais absoluta falta de semancol, sempre achando-se como o grande pensador enquanto todos os demais mortais estão pelo menos um degrau abaixo dele. Aqui, há um bom destaque para Poppy que arvora-se como controladora obsessiva de seu novo jogo, entrando em transes criativos muito bem representados visualmente quase que como a realidade virtual de Ian, o que aponta para a semelhança dos personagens. A maneira como ela descarta Dana que retorna para trabalhar com ela conforme acordado anteriormente chega ao ponto da rudeza, como se Poppy realmente não quisesse ninguém se aproximando de seu “bebê”. E é óbvio que ela não tem chance de dar conta de sua criação sozinha, o que promete levar à implosão da GrimPop ou, mais possivelmente, sua fusão à MQ, especialmente considerando que a oferta de 50 milhões de dólares pelo jogo (e, não podemos esquecer, a contraoferta de 60) foi negada por Poppy.
Na MQ, o problema também gravita ao redor da obsessão, com David muito desconfiado de tudo que Brad faz, seja a limpeza da lixeiras, seja a forma imaculada que ele deixa os banheiros da empresa, com direito até mesmo a papel higiênico com ponta dobrada como em hotéis de luxo. Jo é usada como espiã por David para tentar entender o que Brad estaria planejando, ainda que nada indique que ele efetivamente está tramando algo para além do fato de Brad ser Brad, claro. Se Danny Pudi nunca fez um serial killer no audiovisual, tenho para mim que ele deveria fazer, pois seu trabalho como Brad é assustador mesmo no ambiente humorístico da série. Seu rosto impassível, sua voz sem flexões radicais e sua postura silenciosa, econômica, mas sempre eficiente fazem parte de uma receita para alguém prestes a cometer um crime envolvendo facas, serras e muito sangue, com seu Brad-faxineiro-com-um-plano-que-ainda-não-conhecemos-para-se-vingar é o que de mais próximo teremos de um assassino frio do tipo que faz casaco com a pele de suas vítimas.
No lado puramente cômico, a interação de Rachel e Dana é ótima, seja a conversa franca que elas têm no carro e que leva a um convite para um encontro sexual no sofá do cubículo onde elas trabalhavam testando jogos com a mãe e o pai de Rachel ouvido tudo ao telefone é o tipo de comédia básica, mas boa, que a série faz tão bem. E, claro, quando as duas interpelam os atuais testadores de jogos indagando o porquê de eles não trabalharem em um sofá, oque leva à perguntas sobre a sexualidade dos dois é genial, com a série mais uma vez lidando com o mundo muito louco em que vivemos em que tudo o que falamos precisa ser milimetricamente pensado para que ninguém interprete de alguma maneira obscuramente ofensiva.
Across the Universe nos apresentou ao novo tabuleiro e arrumou as peças. Partners, por seu turno, começa o jogo que será jogado ao longo da temporada de 10 episódios ao estabelecer o conflito entre Ian e Poppy, a obsessão de Poppy com seu jogo e a tensão inevitável trazida pelo retorno de Brad à MQ. Agora é só aguardar para ver que bicho vai dar.
Mythic Quest – 3X01 e 02: Across the Universe e Partners (EUA, 11 de novembro de 2022)
Criação: Rob McElhenney, Charlie Day, Megan Ganz
Direção: Rob McElhenney
Roteiro: Megan Ganz, David Hornsby, Rob McElhenney
Elenco: Rob McElhenney, Charlotte Nicdao, David Hornsby, Danny Pudi, Jessie Ennis, Imani Hakim, Ashly Burch, Naomi Ekperigin
Duração: 25 min. (3X01), 27 min. (3X02)