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Crítica | Mussum, o Filmis

Vida e arte sempre andam de mãos dadas, por mais que não seja óbvio ou visível.

por Frederico Franco
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Mussum, o Filmis não é um filme voltado especificamente para o icônico personagem de Os Trapalhões. Tampouco é um recorte da vida do artista Antônio Carlos Bernardes Gomes. É, na verdade, um pouco de ambos, posicionado em uma zona de intersecção entre personagem e artista. No filme do talentoso Sílvio Guindane somos apresentados a situações chave da vida de Antônio Carlos (ou Mussum) que serviram como seus principais alicerces tanto em sua trajetória pessoal quanto na carreira artística construída através de várias frentes. Acompanhamos no drama com quase duas horas de duração episódios que remetem desde a infância de Mussum até seus últimos dias enquanto membro de seu famigerado grupo de humor. Entre crises de risos e cenas tocantes, percebemos uma pessoa e um personagem moldado por elementos que fogem de seu núcleo familiar: seja fugindo de casa para participar de rodas de samba ou sendo obrigado a apresentar para o público um pouco de seu natural senso de humor, que discutivelmente herdou de sua mãe. O Rio de Janeiro, o amor pela música, o péssimo talento para futebol e até mesmo participação de Cartola e Elza Soares não apenas marcaram a vida de Antônio como também são parte fundamental do estabelecimento dele enquanto multiartista.

Silvio Guindane divide seu personagem principal, e sua narrativa, em três grandes frentes pontuadas por três momentos da vida do protagonista: a infância, a entrada na vida adulta e a consolidação enquanto artista. Nesse primeiro momento, é muito explorada a relação do pequeno Antônio Carlos com sua mãe Malvina – algo que permeia o filme em sua totalidade. Aqui, Guindane constrói um ambiente leve, que através de suas mais diversas sutilezas faz do pequeno casebre de Malvina e de seu filho um lugar acolhedor. Há uma dinâmica de encenação pautada pelo humor inocente do ainda jovem Mussum e pela presença impressionante da atriz Cacau Protásio: nesse primeiro terço, a atriz ganha destaque por seu apurado senso de humor e entrega dramática pontual. Aqui, uma cena ganha destaque.

Quando Antônio Carlos inicia suas aulas no colégio, muito do que aprende, ele traz para casa. Então, em certo dia, ele resolve ensinar sua mãe a escrever seu próprio nome, para poder, finalmente, assinar documentos. A cena em questão revela o potencial de Cacau em sequências dramáticas; sua atuação, entre o encanto quase infantil de poder se reconhecer no papel e o choro engasgado de quem nunca pode assinar o próprio nome, é um dos pontos altos de Mussum, capaz de emocionar até a mais dura das almas. O sorriso de Malvina, de uma espontaneidade tamanha, aproxima a personagem do espectador.

Em um segundo momento, o humorista Yuri Marçal assume a função de dar vida a Antônio Carlos já em sua maioridade, com emprego no exército, já quase na idade adulta. Aqui, ganhamos os primeiros nuances do artista Mussum: já introduzindo no samba, ele e sua banda ganham destaque no cenário carioca principalmente por parcerias com, por exemplo, Elza Soares. Aqui, Sílvio Guindane já apresenta a faceta humorística de Antônio Carlos – parte essa bem executada e cumprida por Marçal. Contudo, se no lado da comédia o filme ganha (e muito) com a entrada do humorista, isso não ocorre na esfera do drama: o ator parece não conseguir sustentar os trechos mais dramáticos de Mussum. Seu trabalho corporal se destaca quando o assunto é fazer rir e já percebemos, nesse momento, primeiros lapsos de gags de humor corporal assumidas pelo personagem Mussum. Nesse estágio da vida, existem os primeiros embates da vida adulta de Antônio Carlos, entre a carreira militar e uma possível aposta na música enquanto ocupação profissional. Se no primeiro terço do filme a leveza é destaque, nesse novo segmento percebemos mais rigor formal por parte da direção; como se a parte lúdica da vida acabasse, dando voz à sobriedade da vida adulta.

Chega em cena, então, Aílton Graça, a escolha perfeita para interpretar Mussum em sua idade adulta. Já estabelecido no ramo da música, novos desafios são propostos na vida de Antônio Carlos: lidar com seu grupo de samba e compromissos da vida de ator – no início trabalhando para Chico Anysio e, depois, em Os Trapalhões. Aílton é uma presença firme e é dono absoluto de toda a encenação. Seu tato humorístico é tanto que a câmera parece nunca querer desgrudar dele: cada segundo de sua atuação é valioso como uma performance efêmera. Toda a transformação corporal do ator e sua capacidade de presença são impressionantes; todo e qualquer detalhe de seu trabalho vale a pena ser notado. No drama, ele se sobressai, conseguindo dar conta dos lados mais obscuros do humorista Mussum – como o medo de perder a mãe e seu problema com o álcool. O final do filme, construído em cima de um catártico discurso, dá ao espectador um pouco do gosto de como a arte salvou – e ainda salva – vidas de crianças da periferia das capitais. A arte não apenas foi tema na vida de Antônio Carlos Bernardes Gomes: foi a responsável em apresentar ao mundo um talento único.

Outro grande mérito do filme de Guindane é saber lidar com a música enquanto instrumento de linguagem. Seja a partir de um melancólico dedilha de Cartola ou aos mais alegres sambas da banda de Mussum, a montagem é certeira em saber pontuar sua atuação a partir dos ritmos das músicas. Nenhuma cena musicada é igual à outra, todas tem suas particularidades de duração, de número de planos e de grau de ruptura entre as imagens. A música, dessa forma, é mais do que um requinte sensorial: é algo que constrói a linguagem do filme.

Mussum, o Filmis é uma tocante viagem através da vida de Antônio Carlos ao mesmo tempo em que constrói a carreira de Mussum enquanto personagem. Guindane, além de arrancar nossos mais sinceros risos e mais tristes lágrimas, consegue também mostrar como os percalços da vida não apenas transformaram a pessoa Antônio, mas como ajudou a construir a identidade de Mussum enquanto personagem. Vida e arte sempre andam de mãos dadas, por mais que não seja óbvio ou visível. Se não fossem as escapadas do pequeno Antônio Carlos para sambas de esquina, quem sabe o que seria dele?  

Mussum, o Filmis – Brasil, 2023
Direção: Sílvio Guindane
Roteiro: Paulo Cursino
Elenco: Aílton Graça, Yuri Marçal, Thawan Lucas, Neuza Borges, Cacau Protásio
Duração: 115 min.

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