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Crítica | Munique, de Robert Harris

por Giba Hoffmann
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Embora esteja longe de ser um dos gêneros que eu leia com mais frequência, a ficção histórica “hard” é algo que sempre terá meu interesse. Há algo de fascinante na ideia de se retratar eventos reais com o máximo de fidelidade e imersão, simultaneamente à inserção de elementos fictícios mínimos para garantir que a coisa toda não se torne uma espécie de documentário sensacionalista em prosa. É um equilíbrio sutil pelo qual, acabei descobrindo, o autor Robert Harris chegou por mais de uma vez no topo da lista de best-sellers. Meu primeiro contato com sua obra foi via o recente Munique, e posso dizer que minhas expectativas foram atendidas e superadas — embora não necessariamente no sentido em que eu imaginava.

O livro retrata os eventos do malfadado Acordo de Munique de 1938, que viu as principais potências europeias concederem a Adolf Hitler o direito de invadir a região dos Sudetos, sob a prerrogativa de evitar que a tensão militarista escalante chegasse às temidas vias de fato que, bem sabemos hoje, acabariam se revelando inevitáveis. Com o Acordo tendo literalmente entrado para a história como um cautionary tale sobre a formação de compromissos com Estados totalitários, parece inelutável que sua retratação fictícia assuma os contornos de uma tragédia anunciada, uma espécie de prelúdio amargo a um dos capítulos mais funestos da história recente.

No entanto, para minha surpresa, essa rota trágica acaba felizmente evitando cair na tentação de recorrer a qualquer artifício retrospectivo que seja para tingir a construção da trama. A narrativa se dá a partir do ponto de vista de dois personagens centrais: Hugh Legat, secretário particular do primeiro-ministro britânico Neville Chamberlain; e Paul Hartmann, diplomata alemão obviamente filiado ao Partido, porém fazendo parte secretamente de um grupo de resistência anti-Hitler. A boa construção destes dois apoios fictícios serve como base para uma narrativa que, excetuando um ou outro personagem de seus respectivos círculos pessoais, retrata de resto um conjunto extenso de figuras históricas reais.

Assim, trata-se de um romance cujo apelo acaba sendo especialmente direcionado ou aos conhecedores do tema (não é o meu caso), ou àqueles que curtem pausar a leitura em vários momentos para dar uma espiada rápida na Wikipedia e se informar um pouco sobre o contexto (definitivamente o meu caso). Claro que nada disso é necessário para se aproveitar a história, e a imersão da prosa de Harris certamente não depende de nenhum conhecimento prévio do tipo. Porém, em se tratando de uma narrativa que investe seus recursos pesadamente na frente da ambientação, o efeito acaba sendo intensificado aos curiosos sobre detalhes históricos intrigantes, que são apresentados pelo autor de forma bem orgânica e sempre interessante.

Aliás, este é outro dos pontos fortes do livro. Apesar de que raramente seja essa a intenção, a retratação caricata dos temas e personalidades em questão acaba sendo uma tendência quase inevitável — paralelos com universais históricos e suas infelizes recriações contemporâneas, por exemplo. Se Harris não consegue disfarçar completamente seu “pezinho acadêmico”, por sorte o autor demonstra bastante habilidade em manter a retração dos personagens históricos e cenários ancorada no realismo razoável, o que ajuda a garantir a coesão do cenário e manter a imersão bem conquistada da narrativa. Em especial, gostei muito da representação de Charmberlain, personagem histórico que, em grande parte devido aos eventos acompanhados aqui, acabou sendo associado a uma espécie de “derrotismo pacificador”, em oposição contrastante ao carisma polêmico de Winston Churchill.

Para quem busca um suspense de espionagem propriamente dito, no entanto, a coisa toda pode acabar parecendo um tanto prolixa. O peso dramático se encontra mais nos dilemas pessoais de Legat e Hartmann do que efetivamente em escapadas noturnas, perseguições contra nazistas tresloucados e as dificuldades em se ser furtivo em uma época em que a informação era trocada via transmissões de rádio e máquinas de escrever barulhentas. Claro que, felizmente, temos um pouco disso tudo, mas o enfoque acaba recaindo mais sobre os protagonistas e suas posições a respeito dos eventos correntes.

Legat e Hartmann compartilham de um passado em comum e são apresentados de forma bem acertada pelo autor. O inglês é um acadêmico frustrado que amarga as picuinhas rotineiras da vida política na qual caiu de para-quedas, ao mesmo tempo em que se arrasta por um casamento fracassado, enquanto o alemão é um idealista romântico e passional cujo nacionalismo  Complementando a ótima construção de personagem, as diferenças culturais dos povos em questão são retratadas de forma interessante através de excelentes diálogos e descrições, que evitam habilmente a pedância e mantém a história fluindo mesmo através de uma narrativa tecnicamente alongada. O resultado foi uma leitura leve e crescentemente intrigante que me pegou com muito mais facilidade do que eu antecipava, e me deixou com vontade de ler mais obras sobre o tema — o que, na minha opinião, é sempre um sinal a favor de um resultado final acertado.

Thriller de espionagem com muito suspense e surpreendentemente pouca espionagem, Munique encontra seus maiores trunfos bem longe de ser um mero prelúdio a qualquer romance de guerra que sirva como efetivo desfecho dos eventos que retrata. A força da ficção histórica de Harris se encontra aqui justamente na construção de personagem bem acertada de nossos protagonistas, cujos pontos de vista fictícios servem como apoio narrativo totalmente imersivo dispensando qualquer avaliação retrospectiva sobre os eventos do Acordo de Munique. Bem compassada e bastante envolvente, a história ganha o leitor principalmente através desse ganho perspectivo que dispensa a alternativa menos interessante de se enquadrar o drama dos eventos retratados a partir do ponto de vista contemporâneo, mas sim totalizado na perspectiva presente dos personagens que o vivenciaram à época.

Munique (Munich, EUA, Reino Unido – 2017)
Autor: 
Robert Harris
Editora nos EUA: Del Rey
Editora Brasileira: Alfaguara / Companhia das Letras
Tradução: 
Braulio Tavares
Páginas: 320 p.

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