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Crítica | Mulan (1998)

por Ritter Fan
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Mulan foi o resultado da vontade da Disney de utilizar sua então recente divisão de animação da Flórida, que havia sido criada no final dos anos 80 para focar em curtas, mas que acabou trabalhando subsidiariamente em grandes lançamentos como A Bela e a Fera, Aladdin e O Rei Leão, com o crescente interesse da produtora com a cultura oriental, resultando na aquisição dos direitos de diversas obras do autor infantil Robert D. San Souci e a produção de um curta que seria chamado China Doll. Quando Souci foi realmente trazido à bordo, o projeto do curta literalmente transformou-se na versão em longa-metragem da lenda de Hua Mulan, guerreira chinesa que, disfarçando-se de homem para lutar contra invasores no lugar de seu pai, enganou seus compatriotas por 12 anos, mostrando seu enorme valor no processo.

A versão Disney da lenda encurta radicalmente a história original de anos para provavelmente alguns meses e coloca Mulan (vozes originais de Ming-Na Wen nos diálogos e de Lea Salonga nas canções)  – disfarçada como Ping – no destacamento comandado pelo valoroso Capitão Li Shang (BD Wong nos diálogos e Donny Osmond nas canções), filho do General Li (James Shigeta), que acaba sendo a última linha de defesa contra a invasão dos hunos (esqueçam quaisquer resquícios de aspectos históricos), comandados pelo impiedoso Shan Yu (Miguel Ferrer). Ao seu lado, Mulan tem a lagarti…, digo dragãozinho falastrão Mushu (Eddie Murphy reproduzindo a fórmula testada em Aladdin de um comediante de renome como uma criatura mágica), um simpático grilo da sorte chamado Gri-Li e seu imponente cavalo Khan (ambos com a “voz” de Frank Welker).

Mulan é a segunda protagonista feminina não europeia da produtora em longas animados e o filme, bebendo um pouco da escola Hércules de lidar com as peculiaridades culturais, consegue convencer como um produto digno e respeitoso do material fonte, ainda que tenham havido comentários especialmente dos chineses sobre as liberdades tomadas, algo natural em adaptações, mas que a Disney não soube equacionar, por exemplo, em Pocahontas. Mesmo que, hoje em dia, muita gente que segue à risca a cartilha do politicamente correto ficaria escandalizada vendo um afro-descendente vivendo um dragão chinês e atores americanos de ascendência japonesa (Pat Morita e George Takei) vivendo importantes personagens chineses, um deles o próprio Imperador, a grande verdade é que o resultado final é uma obra épica sobre honra, igualdade e orgulho que tem apelo universal e, arrisco dizer, não seria o que é sem as referidas vozes do jeitinho que são.

No entanto, mesmo construindo uma protagonista forte, decidida e de valentia ímpar, é fácil sentir, de certa forma, a origem do longa como um curta-metragem, em um dos poucos exemplos da Sétima Arte que teria se beneficiado de mais tempo de projeção no lugar dos econômicos 88 minutos. É comum dizermos que, quando um filme é bom, ele passa rápido, mas, aqui, isso chega a ser frustrante. A construção inicial de Mulan como uma jovem independente que se recusa à moldar-se às convenções da sociedade é meteórica e simbolizada unicamente pela sua preparação forçada por uma casamenteira. A partir desse ponto, que claro, acaba em desapontamento para a família, a personagem, literalmente da noite para o dia, alista-se no exército como homem para salvar o pai já velho e com problemas de locomoção. O momento da transformação é emocionante, com a trilha sonora de Jerry Goldsmith (contratado depois que a escolha primária, Rachel Portman, saiu do projeto depois de engravidar) enquadrando-a perfeitamente, mas, novamente, é um momento quase “piscou-perdeu”, com toda a trama que coloca Mushu, dragão protetor da família que desgraçou-se no passado, ganhando muito mais tempo de projeção, em uma linha narrativa que reflete a de Mulan, já que ele “se disfarça” de dragãozão.

Desse ponto em diante, o roteiro vale-se de elipses e de “montagem de treinamento” para avançar a narrativa a toque de caixa, tudo para culminar na assombrosa chegada dos hunos na famosa cavalgada pela montanha nevada, em um plano geral absolutamente arrebatador que, anos depois, ganharia eco live-action em As Duas Torres, na sequência da triunfal chegada de Gandalf a Helm’s Deep. No terceiro ato, já na Cidade Proibida, em Pequim, o frenesi continua, mas, curiosamente, é a sequência de ação que o roteiro feito a quase 30 mãos (sim, são 29 pessoas creditadas como escritores, de uma maneira ou de outra, ainda que, abaixo, na ficha técnica, por economia, eu só tenha listado os cinco que foram creditados especificamente como roteiristas) mais investe tempo. Não que a ação ali não seja muito boa, pois sem dúvida é, mas aquela qualidade de uma narrativa diferente da comum que o filme vinha carregando esvai-se diante das peripécias um tanto genéricas de Mulan para derrotar Shan Yu que, aliás, é um daqueles vilões que “representam vilões”, mas que pouco chamam a atenção para além disso.

No meio dessa velocidade toda, há, curiosamente, pouco espaço para as canções, que são apenas cinco e que ficam adstritas ao primeiro ato, basicamente. Compostas por Matthew Wilder e David Zippel, com Reflection ganhando maior destaque por ter sido o veículo de entrada nos EUA de Christina Aguilera (a versão brasileira ficou ao encargo da entidade Sandy & Junior). São canções que a produção sub-utiliza e que o marketing jamais deu a atenção devida, já que a Disney estava ressabiada com as bilheterias desapontadoras de O Corcunda de Notre Dame e Hércules e limitou seus gastos nesse lado. Isso contribuiu para que as canções de Mulan deixassem de ganhar o imaginário popular da maneira que talvez merecessem, destino que, de certa forma, acometeu o próprio filme.

Mas o “esquecimento” de Mulan é indevido e injusto. Apesar de seus problemas, a película é muito competente e conta uma história fascinante, com um trabalho de animação que propositalmente foge do detalhismo visto em O Rei Leão, por exemplo, e abraça a simplicidade e elegância das pinturas chinesas com aquarela, algo particularmente evidente no terço inicial na residência da família de Mulan. E, claro, em sua história, há as inevitavelmente incômodas (para os homens, claro) cutucadas no “ser homem” que, se podem ser acusadas de dar um tratamento estereotipado à masculinidade, certamente acertam muito mais do que erram, se é que erram. Ao transformar em diversão um assunto sério, , mas sem didatismo, sem pregação, Mulan acaba tornando-se uma obra muito mais instrutiva do que muitas tentativas recentes de se dar “lição de moral” na base do “deixe-me explicar aqui em detalhes exatamente porque o machismo é ruim e porque a igualdade de gênero simplesmente precisa ser a norma”.

Mulan é o penúltimo filme do chamado Renascimento Disney, que acabaria com Tarzan no ano seguinte, mas, curiosamente, talvez com exceção de Bernardo e Bianca na Terra dos Cangurus, é um dos que menos marcaram esse momento de volta à forma da produtora. Mas o processo que transformou um “mero” curta-metragem sobre outro assunto em uma adaptação de respeito de uma das mais incríveis lendas orientais simplesmente precisa ser lembrado como uma das mais diferentes e genuínas obras da Casa do Camundongo.

Mulan (Idem, EUA – 1998)
Direção: Tony Bancroft, Barry Cook
Roteiro: Rita Hsiao, Chris Sanders, Philip LaZebnik, Raymond Singer, Eugenia Bostwick-Singer (baseado em história de Robert D. San Souci, por sua vez baseada em folclore/poema chinês)
Elenco (vozes originais): Ming-Na Wen, Lea Salonga, Eddie Murphy, BD Wong, Donny Osmond, Miguel Ferrer, June Foray, Marni Nixon, Harvey Fierstein, Gedde Watanabe, Matthew Wilder, Jerry Tondo, James Hong, Soon-Tek Oh, Pat Morita, George Takei, Miriam Margolyes, Freda Foh Shen, James Shigeta, Frank Welker, Chris Sanders, Mary Kay Bergman
Duração: 88 min.

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