O primeiro episódio de Ms. Marvel, assim como nos quadrinhos, é sobre a representação islâmica nas obras de super-heróis, mas, talvez ainda acima disso – e também como nas HQs da personagem -, Generation Why seja sobre o fã, um Galaxy Quest para fãs de super-heróis, mas não o fã sempre de cara amarrada porque determinada série ou filme não é como ele imaginou em seus devaneios, não o fã que leva a sério demais o objeto de sua adoração e não o fã que pega um elemento que desgosta e o usa como cavalo de batalha para destruir todo o restante. Esse aí não é fã, mas sim um chato de galochas. Fã é o cara que, como Kamala Khan, deixa seus olhos brilharem quando se depara com algo que gosta, que tenta compreender que nem sempre adaptações serão iguais ao material fonte (a pista está no nome…) e que investe com alegria em sua paixão.
E não, de forma alguma estou dizendo que o fã é alguém que deve aceitar tudo o que se coloca na telinha ou na telona, pois há que haver espaço para crítica. Mas existem críticas e críticas. As do primeiro tipo tentam olhar para a obra como ela é, encontrando seus pontos negativos e positivos (e nem sempre há pontos negativos e positivos, admito) e as do segundo tipo são aquelas com visão de túnel, ou seja, só veem o que está diretamente a frente e, normalmente, o que está diretamente a frente dessas pessoas é apenas o que elas querem ver e não o que efetivamente está lá.
Precisei desse preâmbulo para abordar o elefante na sala: como é de notório saber mesmo para quem nunca leu os quadrinhos da personagem, os poderes de Kamala Khan foram alterados, o que é aparentemente inaceitável para muita gente. Bem, para fins deste primeiro episódio, a mudança do poder oriundo das névoas terrígenas que permitem que a personagem altere a forma de seu corpo para algo cósmico a partir de um bracelete “mágico” herdado de sua avó sequer interessa, pois o episódio não é sobre isso. Não é sem querer que o destaque dado aos poderes é minúsculo, em apenas uma consideravelmente rápida – e caótica – cena. Generation Why é sobre Kamala Khan, a jovem adolescente de 16 anos que, por se deixar ser adolescente pelo maior tempo possível, é mal vista em sua escola por colegas e professores e que tem uma mãe excessivamente controladora. Ah, sim, claro, além disso, ela é de origem paquistanesa, uma muçulmana, portanto.
E, sabendo disso, é que o roteiro da showrunner anglo-paquistanesa Bisha K. Ali (que foi roteirista em Loki) concentra-se na menina e quase só nela em uma estrutura de coming of age repleta de clichês (o que não é intrinsecamente ruim, vale lembrar) que foca no que ela tem de incomum para o público, ou seja, sua herança paquistanesa e seu fanatismo por super-heróis em geral e pela Capitã Marvel em particular. Por pelo menos dois terços da projeção, o que vemos é um bombardeio desses dois aspectos, com preponderância para suas raízes étnicas e religiosas e isso é por um lado bom, já que é algo que precisa ser martelado para ser internalizado por todos como um dos alicerces da personagem, mas, por outro, é também ruim, já que fica parecendo que um lar muçulmano precisa ter aquela configuração, o que inclui decoração, dinâmica bad cop x good cop da mãe rígida e do pai nem tanto, do irmão ultra religioso que orgulhosamente ostenta uma gigantesca barba típica e assim por diante. Imagino que isso será suavizado nos episódios seguintes, de maneira que possamos encarar tudo como algo normal, do cotidiano de uma família muçulmana e não – como compreensivelmente é aqui – uma enorme bandeira a ser levantada e defendida com intensidade.
Mas o roteiro talvez mais carregado de Ali é compensado pela direção leve, dinâmica e divertida de Adil El Arbi e Bilall Fallah, a dupla belga que comumente assina como Adil & Bilall. O primeiro grande acerto deles é – e sei que estou me repetindo, mas é a verdade – focar em Kamala Khan. Ela é o centro da atenções e é seu comportamento que guia e determina tudo que vemos por seus olhos. E, nesse aspecto, a estreante Iman Vellani é outra daquelas escalações inacreditáveis da Marvel Studios, com a atriz parecendo que nasceu para viver esse papel. Mas, por “esse papel”, não quero exatamente dizer o papel de Kamala Khan, mas sim o papel da adolescente com as características que abordei mais acima. A composição de inocência, deslumbramento, vigor e simpatia em Vellani é apaixonante desde os primeiros segundos em que ela aparece e nunca diminui, muito ao contrário. Ela encarna a adolescente que quer ser adolescente de seu jeito de maneira doce, mas ao mesmo tempo forte e cheia de razão (o que todo adolescente acha que tem), que, como bônus, transforma-se em uma super-heroína e não o contrário.
E a dupla diretora sabe disso, mas, indo além, impõe uma linguagem visual que combina perfeitamente com Kamala e seu mundinho cheio de super-heróis, desenhos e vídeos que faz sobre eles e as fantasias que costura, amplificando-os inteligentemente. O uso de animações variadas dentro da estrutura visual não é nova, claro, com Scott Pilgrim contra o Mundo sendo um dos exemplos que vêm imediatamente à mente, mas o que importa é o quanto ela é fluida e bem construída, servindo para nos lembrar tanto da origem da série nos quadrinhos, quanto o objeto da paixão de Kamala, além de efetivamente comunicar sentimentos e até mesmo diálogos, como é o caso da excelente tomada de grua que acompanha a fachada do prédio com diferentes emojis que representam a conversa em texto entre Kamala e seu melhor amigo – e nerd – Bruno Carrelli (Matt Lintz).
Eu disse, no início, que Generation Why é sobre representação islâmica no audiovisual e que, mais do que isso, é sobre o fã, mas não, mudei de ideia. O que realmente está acima dessas duas características é que esse episódio inicial do que tem potencial para ser uma deliciosa, leve e divertida série de super-heróis é fundamentalmente sobre a alegria de viver, sobre o sorriso que abrimos quando vemos alguém ou alguma coisa que admiramos/gostamos, sobre o aconchego da família próxima, ainda que por vezes sufocante e sobre ser jovem, algo que não se é apenas em função da idade. O resto – incluindo mudança nos poderes – é detalhe.
Obs: Bem no estilo Marvel de ser, há uma cena de meio de crédito que deve ser importante para o desenrolar da série.
Ms. Marvel – 1X01: Generation Why (EUA, 08 de junho de 2022)
Desenvolvimento: Bisha K. Ali
Direção: Adil El Arbi, Bilall Fallah (Adil & Bilall)
Roteiro: Bisha K. Ali
Elenco: Iman Vellani, Matt Lintz, Yasmeen Fletcher, Zenobia Shroff, Mohan Kapur, Saagar Shaikh, Laurel Marsden, Azhar Usman, Arian Moayed, Alysia Reiner
Duração: 49 min.