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Crítica | Mrs. Dalloway, de Virginia Woolf

Reflexões da escritora sobre a inevitabilidade da morte.

por Leonardo Campos
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Amplamente reconhecida como uma pioneira no campo da crítica feminista, a escritora Virginia Woolf nos deixou escritos que costumo dizer, examinam a experiência das mulheres na sociedade patriarcal e desafiam as normas estabelecidas, numa abordagem da desigualdade de gênero e das barreiras à educação e à criatividade das mulheres, num feixe de composições ficcionais, críticas e ensaísticas que ainda ressoam relevantes na contemporaneidade. Inovadora em seu estilo de escrita singular, ela ficou conhecida pela utilização do fluxo de consciência e de narrativas alternativas desafiadoras, incomuns diante do padrão de se contar histórias em sua época, influenciando gerações subsequentes de escritores com a sua capacidade de capturar os pensamentos e sentimentos interiores de seus personagens, como podemos ver traduzido, por exemplo, nas cenas do drama As Horas, dirigido por Stephen Daldry e escrito por David Hare, uma versão audiovisual do romance homônimo de Michael Cunningham, autor desse mencionado e interessante pastiche da escritora. Ao longo da narrativa, Woolf está diante dos desafios para compor Mrs. Dalloway, enquanto outra personagem lê a sua publicação e outra, mais contemporânea, vivencia a tradução livre de sua criação.

Aqui, caro leitor, refletiremos sobre a produção de Woolf, uma história complexa, de estrutura pouco convencional e ideal para momentos de diletantismo em ambientes silenciosos, sem o tom vertiginoso que domina o nosso cotidiano na atualidade. Publicado em 1925, é um romance modernista que narra um dia na vida de Clarissa Dalloway, uma mulher de alta sociedade em Londres. A história se desenrola em um único dia em junho, quando Clarissa está ocupada preparando uma festa em sua casa à noite. Durante o decorrer do dia, conhecemos seus pensamentos e emoções, bem como os de outras personagens, especialmente o soldado Septimus Warren Smith, um ex-combatente da Primeira Guerra Mundial que luta contra o transtorno de estresse pós-traumático. Assim, ao longo do dia, os pensamentos e diálogos internos das personagens exploram temas como o passageiro da vida, a percepção, a solidão, o envelhecimento, a loucura e a complexidade das relações humanas.

O romance é conhecido por sua técnica narrativa inovadora, que se caracteriza pela fluidez do tempo e da consciência, saltando de uma personagem para outra e empregando técnicas como o fluxo de consciência para retratar a subjetividade das personagens. Através da rotina aparentemente comum de uma mulher branca e elitizada londrina, Woolf oferece uma reflexão profunda sobre a vida, a morte, a memória e a identidade individual. Em sua escrita que é pura subjetividade, a escritora emprega uma estrutura de fluxo de consciência que desempenha um papel fundamental na narrativa, pois impacta significativamente a forma como a história é contada e como os leitores interagem com as personagens e os eventos do romance. É uma escolha que permite determinada intimidade com as personagens, pois o uso do fluxo de consciência permite que os leitores acessem os pensamentos mais íntimos e profundos das personagens, criando uma maior sensação de proximidade e empatia com elas.

É algo que nos permite entrar no mundo interior das personagens e entender suas emoções, dilemas e conflitos de uma maneira mais direta e imersiva. Além disso, há a mudança de perspectiva e exploração da subjetividade. No primeiro caso, a técnica do fluxo de consciência possibilita mudanças fluidas de perspectiva e de voz narrativa ao longo do romance. Os pensamentos e memórias das personagens se entrelaçam de forma não linear, criando uma narrativa fragmentada e multifacetada que reflete a complexidade da experiência humana e a natureza subjetiva da consciência. Sobre a exploração daquilo que nos é subjetivo, ao adotar a técnica, Virginia Woolf busca capturar a experiência subjetiva da passagem do tempo, da memória e da percepção. A narrativa reflete a fluidez e a fragmentação da consciência humana, revelando como os pensamentos e emoções das personagens se entrelaçam e se transformam ao longo do tempo, quebrando também cristalizadas convenções narrativas.

Ademais, a estrutura de fluxo de consciência desafia as convenções narrativas tradicionais, rompendo com a linearidade e a objetividade convencional, enriquecendo a narrativa, proporcionando uma exploração profunda da psique das personagens, uma reflexão sobre a passagem do tempo e uma representação autêntica da subjetividade e da experiência humana. Como dito, não é uma experiência completamente prazerosa, pois constantemente somos impelidos a voltar, nos concentrar, e reler novamente algumas passagens, para melhor compreensão. Mas isso não é culpa da escritora, mas de nosso dispersivo e barulhento tempo. Mas, se estamos falando de ler 1925 em 2024, tais considerações se fazem necessárias. Além de seu impacto literário, ela e Leonard Woolf (seu marido) trabalharam na fundação da editora Hogarth Press, responsável por publicar muitas obras importantes de escritores modernistas. Ela também foi membro do Bloomsbury Group, um círculo de intelectuais e artistas que influenciaram profundamente a cultura britânica do início do século XX. Elitista? Sim. Um espaço para poucos, mas historicamente significativo, pois transformou a literatura com sua inovação formal, introspecção psicológica e compromisso com as questões feministas.

Durante a leitura, é possível perceber que em suas abordagens, a escritora flerta com diversificadas questões sobre as instabilidades de nossa essência humana. No decorrer das páginas, trata de tempo e memória, pois a sua “trama” se passa em um único dia, mas delineia profundamente as memórias e o impacto do passado sobre o presente. Sobre identidade e autoconhecimento, Clarissa Dalloway nos coloca diante de suas reflexões sobre sua própria vida, suas escolhas, e como estas moldaram quem ela é, bem como seus propósitos para o que vem adiante. De maneira mais discreta, a obra explora as diferenças e tensões entre as classes sociais na sociedade britânica pós-Primeira Guerra Mundial, tratando também dos traumas que ressoam do belicismo, pois o personagem Septimus Warren Smith representa os horrores e traumas da Primeira Guerra Mundial, uma maneira da escritora criticar os efeitos duradouros e devastadores do conflito. O livro investiga as complexas relações entre os personagens, incluindo amizade, amor e casamento, e como estas influenciam suas vidas, sendo uma referência acerca dos relacionamentos interpessoais. De maneira profunda e desoladora, nos mostra também como os seus personagens lutam com sentimentos de solidão e procuram conexões autênticas com os outros. Ademais, divaga sobre morte e mortalidade, com reflexões sobre a inevitabilidade da morte e possíveis interpretações sobre os significados da vida, além de celebrar a “beleza” do cotidiano e as revelações extraordinárias que podem ocorrer nas rotinas diárias.

O seu extenso legado perdura não apenas através de suas publicações, mas também pela inspiração que deixou diante das convenções, instigando seus leitores ao explorar novas formas de expressão. Em linhas gerais, por causa de suas traduções para outras linguagens, essa é uma das histórias mais conhecidas da escritora por aqui. Virginia Woolf foi uma das figuras centrais do modernismo literário do século XX, figura social que deixou um legado duradouro na literatura e na crítica feminista. A brasileira Clarice Lispector, por exemplo, é uma das representantes do estilo semelhante ao tecido pela britânica na escrita, autora canônica que deixou como dos traços mais notáveis de suas composições, a postura desafiadora diante das convenções narrativas de sua época. Além de Mrs. Dalloway, podemos considerar como marcos da escritora, as seguintes publicações: Orlando, de 1928, narrativa que atravessa séculos na vida do personagem-título, mudando de gênero ao longo do tempo, se estabelecendo tanto como uma biografia ficcional quanto como uma reflexão sobre identidade e liberdade, e As Ondas, de 1931, uma de suas produções mais experimentais, que nos apresenta uma série de monólogos internos dos seus personagens que se entrelaçam, criando uma espécie de sinfonia literária complexa. Além dos livros mencionados, a escritora deixou um rastro considerável de ensaios e crítica literária.

Experimente a leitura de Virginia Woolf. É uma viagem densa e cifrada, mas muito significativa.

Mrs. Dalloway (Reino Unido, 1925)
Autor: Virginia Woolf
Editora no Brasil: Autêntica
Tradução: Tomaz Tadeu
Páginas: 272

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