Lançado dois anos antes de Glória Feita de Sangue, Morte Sem Glória contrasta de maneira contrária o filme de Kubrick. Apesar dos títulos inversos em relação aos seus respectivos conteúdos (o primeiro por ironia, o segundo por contradição), o longa mais recente tomava um suposto ato de covardia como ponto de partida para uma reflexão acerca da guerra como fenômeno geral, enquanto o filme de Robert Aldrich parte de seu oposto: a covardia é centralizada e totalmente antagonizada. Basicamente, o diretor se alimenta do outro lado da moeda, pautando-se na honra e na bravura. O roteiro quer criar um senso de união e de autodeterminação, mantendo-se preso às questões relativas ao exército e aos conflitos; ao passo que a história de Glória Feita de Sangue extrapola isso, indo para o questionamento das instituições sociais. Um é mais individual e romântico, já o outro acaba sendo mais político e pessimista. No entanto, a produção de Aldrich não deixa de questionar as instituições, assim como a de Kubrick não ignora a subjetividade de seus personagens.
O prólogo de Morte Sem Glória apresenta, de uma vez, a situação-chave para o desencadeamento da trama: a covarde inércia do capitão interpretado por Eddie Albert numa batalha que levou à morte três soldados. A sequência se encerra com uma bonita montagem que se alterna entre o capacete de um desses mortos rolando e a face comovente de um soldado vivido por Jack Palance – que vai de um plano médio a um close por meio de um zoom-in. O personagem de Palance representa a bravura e, mais do que isso, o repúdio diante de Albert, encarnação da covardia. O sentimento do soldado não se apoia em um fútil moralismo egocêntrico, mas no apreço que possui por seus companheiros. Por isso, com ele nos identificamos a cada instante, vemos humanismo quando este exterioriza todo o seu vigor em ódio. Conexão essa, entre personagem e público, que acontece mais no seu papel como simples ser humano do que como membro do exército.
Quanto a Albert, ele começa na forma de um covarde a ser desprezado, torna-se um coitado digno de empatia e termina como um canalha passivo de ainda mais aversão. É o personagem mais bidimensional da obra, o que percebemos principalmente quando nos deparamos com a impactante cena (uma das melhores) em que ele externaliza, de modo caloroso, seus demônios interiores ligados à sua conduta, chicoteando a si mesmo ao relembrar da repressão e agressões de seu rigoroso pai, que o rejeitava e queria “fazer dele um homem”. Nessa cena, Albert atinge o clímax de sua atuação, sendo histriônico e despertando a sensibilidade do espectador para ele. Mas esse outro lado não é a sua principal versão alternativa, e sim o sociopata que ele vira (ou revela ser) em seguida, levando a um outro clímax: a cena de suspense em que os soldados no porão o ameaçam e ele reverte a situação.
Sua presença no front não retrata apenas ele próprio, mas também a instituição do exército, denunciando o nepotismo daquele meio, pois Albert só está em tal cargo graças aos caprichos de um familiar de patente superior. Como dito, o filme consegue adentrar na crítica social, assim como Glória Feita de Sangue, porém tudo gira realmente em torno é de uma rede de valores e de individualidades que é cristalizada em alguns momentos sublimes. Há uma passagem para lá de impressionista quando um soldado vê outro à beira da morte em conflito. As nuvens no céu, a fotografia um pouco límpida e o tom solene em meio à situação agonizante dão uma completa poesia à cena em forma e conteúdo. Algo parecido, no entanto, de modo muito mais seco, é quando Palance vê outro soldado morto. “Eu não sabia que um homem podia sangrar tanto“, diz ele numa passagem cujo lirismo se dá, agora, de maneira verbalizada e mais brutal. Esses dois momentos expressam os afetos que existem naquele companheirismo tão viril, o qual é manifestado, mais uma vez, quando todos assumem a culpa do homicídio de Albert na cena em que atiram em seu corpo já morto – um outro ponto alto do filme.
Esteticamente, chamam sempre atenção os planos nos quais há destaque para um objeto em primeiro estado enquanto corre a ação mais ao fundo. É uma ligação em que uma coisa é ponto de partida e de visão para outra. Há esse objeto em um espaço inicial perto da câmera e mais um objeto em um espaço secundário. O primeiro abre a perspectiva para o segundo, que, no fundo, é o que realmente importa para a história, mas não para o filme em si. Isso porque temos aqui uma obra que coloca a direção em completo destaque a todo momento, com um trabalho de decupagem absolutamente deslumbrante e minucioso, sendo esse tipo de plano seu carro-chefe.
É como se muitas vezes tivéssemos nesses quadros um certo “observador” que vigia os personagens em ação. Um alguém no canto, além da história, que marca território pelo fato da câmera posicionar alguma coisa em destaque ao mesmo tempo que a narrativa corre à frente. Este primeiro objeto pode abarcar todo/quase todo o quadro, sendo algo que cede espaço para partes do outro lado ou qualquer outra coisa física que perpassa apenas um canto da tela. Quando não existe esse observador oculto, são os próprios personagens que exercem esse papel de observar; desta vez não capturando outros personagens, mas o mundo afora. O caso mais frequente disso são os planos dos soldados dentro de alguns escombros, os quais vigiam o que acontece no lado exterior por meio do buraco de uma parede parcialmente desmoronada.
A decupagem também executa um belo trabalho com seus planos zenitais e plongées distantes nos mais diversos ângulos, capturando o cenário com amplitude e reforçando a presença de um observador. São planos de cenários internos com foco geral e a câmera em posição superior que coexistem com outros belos planos, agora em locações externas com foco específico em posição inferior. Na primeira parte, vemos corpos inteiros de personagens em diálogo; na segunda, suas pernas geralmente com eles em ação. Seguindo essa mesma lógica de focalizar pedaços específicos, a decupagem reafirma a dramaticidade da narrativa em seu uso de zoom-in, closes e planos detalhes; e, como contraponto, também oferece destaque aos planos conjuntos, criando um contraste por intermédio dessa multiplicidade e totalidade.
Attack! (EUA – 1956)
Direção: Robert Aldrich
Roteiro: James Poe
Elenco: Jack Palance, Eddie Albert, Lee Marvin, Robert Strauss, Richard Jaeckel, Buddy Ebsen, Jon Shepodd, Peter van Eyck, James Goodwin, Henry Rowland
Duração: 107 minutos