Retomar minha leitura de Monstress pouco mais de um ano desde o segundo volume foi bem nostálgico. Eu havia me esquecido do quão deslumbrante é o universo criado por Majorie Liu e Sana Takeda. A pegada steampunk com fortes tons amarelos e a tecnologia da era vitoriana se misturando com a qualidade escura desta fantasia épica sombria com seus monstros lovecraftianos (também meio kaijus), além dos personagens antropomórficos e a arquitetura/folclore asiática, é uma configuração visual que conceitualmente parece uma bagunça, mas que Takeda torna coesa, natural e fascinante.
Começo a perceber que a artista é um pouco limitada em termos de diagramação, especialmente quando há combates, nos quais Takeda tem dificuldade em oferecer fluidez e ritmo visual para cenas de luta ou sequências agitadas – isso me incomoda em alguns momentos de clímax que são quebrados pela falta de dinamismo. Mas cada painel continua sendo um deleite aos olhos, onde tudo é ao mesmo tempo aterrorizante e belo, especialmente algumas páginas delirantes que vemos neste volume, com muitos momentos oníricos de Maika e também situações distorcidas e sinistras com os Monstrum. Também chamados de velhos deuses, as criaturas parecem ter saído de um horror cósmico de Lovecraft, uma inspiração cada vez mais forte na série, seja visualmente, seja em seu mistério e medo do desconhecido.
Esse medo do desconhecido, aliás, é uma extensão do tema da série de preconceito com o outro, especialmente com asiáticos no inteligente subtexto de Liu. É um molde narrativo bem comum em fantasias (vemos isso incessantemente com elfos), mas que Liu torna o fronte da história e não algo apenas tangente. Este conflito vai de encontro com o arco da protagonista, buscando respostas sobre seu passado, sua família e seu povo, e também tentando encontrar pertencimento cultural em meio a sua negação e raiva. Esse volume, porém, faz algo que eu não esperava, tornando os Monstrum parte desse tema, com sua “raça” também participando em discussões de discriminação e memória coletiva, lentamente distanciando-os de um antagonismo maniqueísta. Veremos como será o desenvolvimento da reclamação histórica de Maika e Zinn.
O terceiro volume é, no entanto, mais fraco que os anteriores. Nada remotamente perto de mediocridade, mas Liu comete alguns deslizes narrativos em termos de construção de mundo e progresso orgânico da trama principal. A mitologia de Monstress é extremamente complexa, com muitos povos, artefatos, períodos históricos, culturas, governos, tecnologias, etc, que conhecemos pouco ou quase nada. Às vezes chega a ser difícil de acompanhar o que está acontecendo nesse universo, mas acredito que faz parte da magia da série aprendermos um pouquinho de cada vez (mistério é essencial na HQ, afinal), sem Liu pegando na mão do leitor e mastigando conteúdo, e também se distanciando de clichês – as pequenas explicações posteriores ao final de cada edição é um artifício sagaz para dar background e enriquecer a experiência.
Mas no terceiro volume Liu se inclina para uma direção oposta, exagerando a mão na explicação e nos dando um banho de exposição que por oras é envolvente e em algumas situações pontuais incomoda. Acaba sendo uma consequência do tipo de história que ela está contando aqui, mais política e elucidativa, para preparar o terreno para a guerra entre diferentes povos do próximo volume. Temos uma noção maior de lore e funcionamento deste universo, então enxergo o valor e a qualidade de worldbuilding (felizmente sem perder a veia misteriosa), mas pagando um leve preço em termos de desenvolvimento orgânico da jornada de Maika. Vejo isso principalmente nos diálogos, que sempre foram carregados na série, mas agora interessados mais no entorno do que na protagonista, sendo de longe o volume com menos desenvolvimento da personagem em si e seus conflitos.
Mas, como eu disse, são pequenas derrapadas que não atrapalham o todo. Refúgio termina sendo um volume com muita preparação, quase um interlúdio com pouca aventura e muita informação. Mas no meio disso Monstress se mantém instigante em seus pequenos enigmas, mitologicamente rica, visualmente espetacular e com um clímax arrebatador. Ler a série é como voltar ao mundo que não queremos deixar; queremos habitá-lo mesmo em seu tom lúgubre. E para tanta melancolia, Liu continua oferecendo um toque cômico, em especial a maravilhosa dinâmica entre a constante irritação de Maika e as frases irônicas de Zinn. Mais um traço inesperado em uma série com tantos elementos narrativos, temáticos e visuais, que não deveria funcionar, mas Liu e Takeda fazem funcionar com uma execução extraordinária.
Monstress – Vol. 3: Refúgio (Monstress – Vol. 3: Haven, EUA – 2018)
Contendo: Monstress #13 a 18
Roteiro: Marjorie Liu
Arte: Sana Takeda
Letras: Rus Wooton
Editora original: Image Comics
Páginas: 152