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Crítica | Monster (2023)

Quem é o monstro?

por Ritter Fan
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Depois do delicado Assunto de Família, de 2018, o cineasta nipônico Hirokazu Kore-eda dirigiu dois longas não falados em japonês e duas séries de TV que, no agregado, não lhe trouxeram muita projeção e, agora, ele retorna à sua língua natal com Monster, uma obra com ecos de Rashomon, mas que não só lida com assuntos, mais, digamos, cotidianos, como funciona como um estudo sobre perspectiva cujos pontos de vista não partem de narrativas contadas por pessoas diferentes, mas sim do conjunto de informações disponíveis em cada abordagem. A obra funciona como um drama angustiante, como uma obra libertadora, como uma provocação aos intolerantes e, também, como um convite para que todos sempre procurem compreender determinada situação não somente por relatos que lhe chegam passivamente, mas sim depois de um trabalho ativo e de boa fé de tentar realmente chegar à verdade, quase que como um exercício de dialética.

O ponto de partida do longa escrito por Yuji Sakamoto é a mudança de comportamento do jovem Minato (Sōya Kurokawa) que passa a preocupar sua mãe, a viúva Saori Mugino (Sakura Andō). Acreditando que seu filho vem sofrendo abusos por parte de seu professor Michitoshi Hori (Eita Nagayama), ela parte para tomar satisfações na escola, encontrando frustrantes barreiras administrativas impostas pela vice-diretora Humiaki Shoda (Akihiro Tsunoda) e seu colegiado de assistentes. Quem já assistiu o kafkiano A Caça, de Thomas Vinterberg, fará conexões imediatas, mas, como mencionei, Monster usa essa premissa inicial apenas como uma forma de laçar o espectador para uma narrativa gradativamente mais complexa e nuançada que envolve Minato e também seu colega de sala e amigo Yori Hoshikawa (Hinata Hiiragi), um menino psicologicamente massacrado por seu pai grosseirão, mas que cultiva uma visão surpreendente de mundo que, aos poucos, ele compartilha com Minato.

Na medida em que os outros pontos de vista são desnudados, algo que Kore-eda faz com cadência perfeita a partir de um cuidado trabalho de montagem que, como de praxe, ele mesmo capitaneou e que mantem fresca cada perspectiva, as peças do quebra-cabeças do que realmente aconteceu são oferecidas e o espectador percebe finalmente que o monstro do título não é exatamente essa ou aquela pessoa, por mais inaceitável que seja sua atitude, e muito menos o pequeno Yori, assim chamado por seu pai, mas sim todos nós, a sociedade como um todo cujo engessamento de visão, como que usando antolhos e por vezes até vendas, tem enorme dificuldade – recusa teimosa em muitos casos, infelizmente – de compreender e aceitar diferenças em relação a padrões profundamente enraizados. O que Kore-eda tenta fazer e, mais do que isso, consegue fazer, é aos poucos, retirar os limitadores de visão, mas sem recorrer a saídas fáceis como usar um imagético de choque e sem tentar impor suas opiniões goela abaixo, ainda que, claro, ele não deixe dúvidas sobre a mensagem que deseja passar.

Chega a ser fascinante como, ao longo de pouco mais de duas horas, Monster trafega sutilmente entre gêneros, começando quase que como um thriller e terminando como um drama socialmente consciente que abre os olhos para a importância de se ouvir diferentes pontos de vista e estudar as perspectivas antes de apressada e afobadamente chegar a uma conclusão inflexível. E essa jornada é pontuada pela trilha sonora à base de piano composta pelo saudoso Ryuichi Sakamoto, então já muito fraco em razão de sua batalha contra o câncer, que resultou na entrega de duas peças exclusivas para o filme e uma série de outras retiradas de seu mais recente álbum. Sakamoto faleceu pouco antes do longa estrear, mas seu trabalho é essencial para que ele funcione, com abordagens musicais quase fantasmagóricas que Kore-eda usa cirurgicamente para pontuar especialmente as mudanças de ponto de vista e a conexão entre os dois jovens protagonistas.

Falando em Soya Kurokawa e Hinata Hiiragi, aliás, os dois meninos, que estreiam em produções cinematográficas depois de breves passagens pela televisão, são grandes achados por parte do processo de seleção de elenco comandado por Rie Tabata. Era muito importante que os dois, juntos, fossem muito eficientes mesmo em momentos de conflito e tensão, mas era ainda mais essencial para a construção da narrativa que suas marcantes diferenças físicas – Kurokawa é bem mais alto que Hiiragi, por exemplo – estabelecessem suas visões de mundo que, aos poucos, passam a convergir, com Kore-eda trabalhando a câmera para justamente aproximar os jovens, mas preservando suas características quase que opostas, por assim dizer. O elenco adulto também merece todos os elogios, notadamente Akihiro Tsunoda como a vice-diretora da escola de passado sombrio que entrega uma performance que anda no fio da navalha entre frieza aparente e profunda dor na alma, características antitéticas que só conversam quando realmente conhecemos toda a história.

Como Assunto de Família, Monster é um daqueles filmes que, quando os créditos começam a subir, o espectador continua olhando para a tela não tentando desvendar a complexidade da narrativa, pois Kore-eda não se interessa por hermetismos, mas sim digerindo vagarosamente a mensagem e transpondo-a para a realidade de cada um. Se nós somos o monstro, então cabe a cada um de nós suprimi-lo e trazer à tona uma honesta conversa interior que tenta efetivamente compreender o outro a partir de mais do que nossos impulsos primordiais a partir de uma visão perfunctória normalmente trazida por terceiros. Não é fácil, admito, e nem sempre teremos sucesso nessa empreitada. Mas é muito importante tentarmos ser mais do que o que dizem que nós temos que ser.

Monster ( 怪物 / Kaibutsu – Japão, 2023)
Direção: Hirokazu Kore-eda
Roteiro: Yuji Sakamoto
Elenco: Sakura Andō, Eita Nagayama, Sōya Kurokawa, Hinata Hiiragi, Mitsuki Takahata, Akihiro Tsunoda, Shidō Nakamura, Yūko Tanaka
Duração: 125 min.

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