Moebius causa dor física. Por 89 minutos. Sem parar. Se você não tiver estômago para a dor, nem pense em chegar próximo a esse filme.
Kim Ki-duk já havia causado furor em Veneza em 2012 com seu Pietà, filme que acabou levando o Leão de Ouro. Repetiu o feito com Moebius esse ano, filme inicialmente proibido em seu país natal. Não levou o Leão de Ouro, mas deixou sua marca. Aliás, como sempre.
E porque Moebius causa dor física? Ao tentar explicar sobre o que é seu filme, o diretor, em entrevista, afirmou que seria uma análise de como a sociedade coreana encara o amor. Interessante se for isso. Mas também assustador. A relação entre dor e amor (seja meramente carnal, seja amor verdadeiro) é o mote da película e, se é assim que a sociedade coreana encara o amor, não quero nem saber como eles encaram o ódio.
De toda forma, independente de uma tentativa de explicação de como funciona uma sociedade, Moebius é, em primeiro lugar, um experimento audiovisual. Calma, eu vou chegar na questão “dor” muito em breve, mas prefiro abordar a escolha estética do diretor e roteirista antes, que é peculiar e, no final das contas, muito bem executada.
Durante toda a projeção não há diálogos. E o filme não pode ser classificado como mudo. Afinal, filmes mudos têm diálogos que apenas não são ouvidos. Além disso, em Moebius, ouvimos todos os sons diegéticos, menos a voz. Ninguém abre a boca para falar, apenas para gritar de dor e de prazer, grunhir e todos os demais sons guturais que o ser humano é capaz de produzir. Somos simples animais pela lente do diretor, animais que precisam de sexo, com ou sem amor, mesmo que isso signifique tomar medidas extremas para tanto.
Esse silêncio pode parecer um artifício para chamar atenção para o próprio filme e algo que, em última análise, não deveria funcionar em um longa-metragem. Mas Kim Ki-Duk faz funcionar e muito bem, aliás. Recorrendo apenas duas vezes para palavras escritas na tela, mas de forma natural (em buscas pela internet), o trabalho do diretor em montar as cenas de forma que o diálogo se torna supérfluo é, no mínimo, extremamente interessante. Uma das coisas que filmes hollywoodianos mais fazem é explicar em detalhes, por meio de diálogos extensos e for dummies, o que estamos vendo na tela. Ora, obras audiovisuais, apesar do nome, são essencialmente imagens. As palavras estão lá para repetir o tom natural do dia-a-dia, mas ninguém no cotidiano que vê um acidente na rua explica para o amigo que está ao lado e também viu o ocorrido que o que estão vendo é um acidente. E Moebius dá uma lição ao não utilizar a voz. Entendemos tudo e a narrativa flui normalmente, sem solavancos, sem ficarmos na dúvida.
Claro que o trabalho dos atores – o pai, a mãe, o filho e a amante – é crucial para o resultado positivo no trabalho do diretor. Sem a expressividade deles, que Kim Ki-Duk explora com planos próximos aos rostos, mas sem exagerar nos close-ups, a fita não funcionaria. E não vemos teatralidade demais também, especialmente na relação entre pai e filho. A mãe, que tem um ataque de fúria logo no começo do filme, parece mais uma bruxa saída do teatro kabuki japonês, mas que, em sendo ela o estopim para a trama toda, podemos aceitar perfeitamente sua atuação no início.
E que trama é essa e, especialmente, que dor é essa mencionada logo no início dessa crítica?
Bem, a trama gira em torno de um pai que tem um caso com outra mulher e sua esposa descobre. O resultado é que a esposa tenta castrar o pai com uma faca e, quando não consegue, parte para castrar o filho, depois de vê-lo se masturbando. E consegue, em angustiante sequência cheia de urros, gritos desesperados e sangue. Ato contínuo, a mãe foge e só volta a aparecer no finalzinho do filme.
O pai, vendo o filho sofrer com a situação e, claro, sentindo-se culpado pelo ocorrido, passa por uma castração cirúrgica e, quando o filho vai preso por estupro (!), descobre que, mesmo sem pênis, é possível ter orgasmos. Basta, para isso, que dor seja infligida em terminações nervosas nos pés ou nos braços. Quando o espectador acha que acabaram as castrações, aí é que a dor de verdade começa.
Assim, o filme é, literalmente, uma sequência de castrações, um estupro múltiplo e autoimolações. Isso é amor? Ou mesmo só sexo? Só o espectador que aguentar até o final poderá efetivamente decidir.
Apesar de toda essa dor, o filme não trata o assunto de maneira gratuita, sem consequências. Kim Ki-Duk quer chocar sim, mas faz isso de maneira consciente e muito técnica. O grande problema é que a multiplicidade de assuntos que o diretor tenta abordar. É a relação entre prazer e dor, a relação entre pai e filho, as consequências do estupro, vingança, Complexo de Édipo e por aí vai. É como se, dentro de uma cartilha interminável de assuntos tabu, Kim Ki-Duk tenha querido tratar de todos ao mesmo tempo.
Isso não faz do filme uma bagunça, como muito poderão imaginar, mas acaba retirando a profundidade da abordagem e focando demais nos eventos difíceis de ver sem trincar os dentes. O resultado é que a tentativa de chocar a audiência acaba se sobressaindo demais.
Moebius é uma experiência dolorosa, dificílima de assistir, mas muito interessante pela fluidez da narrativa sem diálogos e pela capacidade dos atores, sem usar palavras, passar sentimentos profundos. Se você tiver estômago forte e aguentar até o fim, verá que a dor realmente traz algum prazer. Mas não sairá ileso da projeção.
Moebius (Idem, Coréia do Sul – 2013)
Direção: Kim Ki-duk
Roteiro: Kim Ki-duk
Elenco: Jo Jae-hyeon, Lee Eun-woo, Seo Young Ju
Duração: 89 min.