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Crítica | Modelo de Serviço, de Adrian Tchaikovsky

O que somos sem um propósito?

por Ritter Fan
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A mais recente obra do prolífico autor britânico de ficção científica Adrian Tchaikovsky gira em torno de uma premissa que muitos podem considerar batida: um robô mordomo/valete (que lembra muito o Sr. Stevens do romance e filme Os Vestígios do Dia), depois de matar seu dono/mestre na enorme mansão em que vivia, parte em uma jornada de autoconhecimento e de busca de propósito. Pode parecer apenas a história de um robô que ganhou senciência e independência, na linha das novelas e romances da série Diários de um Robô-Assassino, de Martha Wells, mas há algo a mais em Modelo de Serviço (minha tradução literal já que não há versão brasileira na data de publicação da presente crítica), já que Tchaikovksy não está interessado, aqui, em ação, mas sim em indagação e em crítica sociopolítica, com uma boa quantidade de discussões filosóficas, ainda que jamais com a complexidade que, talvez, se pudesse esperar.

Dividindo sua obra em cinco partes que ganham “títulos robóticos” que espelham grandes mestres da literatura mundial – KR15-T (Christie), K4FK-R (Kafka), 4W-L (Orwell), 80RH-5 (Borges), D4NT-A (Dante) – e que se relacionam com a temática e/ou estrutura de cada uma dessas partes, percebe-se de imediato que o autor tenta emprestar pompa e circunstância ao seu romance. E, de certa forma, mesmo que a citação aos referidos autores possa parecer prepotência, Tchaikovsky mais acerta do que erra no seu espelhamento de estilos e de discussões neste mundo em que os robôs são onipresentes e subservientes aos humanos, ainda que a presença humana em si seja diminuta na narrativa por razões que vão ficando claras ao longo do caminho que Charles, que depois é rebatizado como UnCharles (algo como DesCharles), toma quando a investigação sobre o crime que ele cometera não dá em lugar algum pela fascinante e ao mesmo tempo hilária lógica binária dos autômatos.

A grande pergunta do romance que, claro, é dirigida a nós, leitores, é muito direta e básica, ainda que enseje muita discussão potencialmente interessante e que o autor tenta trabalhar aqui: quem somos nós sem um propósito? Charles, depois que fica sem um dono/mestre, não pode mais exercer as funções que foi programado para exercer e sai em busca de uma resposta, do que efetivamente fazer, do que ser. Não demora e ele passa a ser acompanhado por outro robô que mais abertamente é senciente – e há um mistério bem óbvio sobre ele que Tchaikovsky erra em demorar demais em revelar e explorar – e que tenta fazer de tudo para que Charles tome decisões por si mesmo, sem depender de caminhos pré-estabelecidos, algo que ele hesita fortemente em fazer, mesmo que acabe sucumbindo aqui ou ali pela completa falta de alternativa sobre o que fazer. Esse segundo robô, que se autodenomina The Wonk (cuja tradução poderia variar de “O Idiota” até “O Nerd”), afirma, sem medo de errar, que Charles foi infectado pelo “vírus protagonista” que liberta robôs de suas programações e permite que eles, como o nome deixa claro, tornem-se senhores de si mesmos, algo que permanece o tempo todo como um importante subtexto narrativo que aprofunda a pergunta central e indaga se nós, humanos, somos mesmo senhores de nós mesmos.

O tom cômico, por vezes satírico de Tchaikovsky é uma delícia e, no conjunto, toma a forma de uma parábola sobre a humanidade, discutindo livre arbítrio, conflito de classes, decadência da aristocracia, burocracia, religião e uma série de outros assuntos que são imediata e diretamente transponíveis ao mundo real, ao cotidiano de cada um de nós. Há muita reflexão no texto e uma abordagem filosófica clássica de problemas postos que podem ou não ter soluções, com muitas vezes as respostas passando por um labirinto lógico que retorna à raiz da indagação, em uma espécie de loop infinito e inquebrantável que, considerando a natureza do protagonista, encaixa-se perfeitamente à proposta. Tudo o que UnCharles quer é cuidar da agenda de viagens de seu dono/mestre e servir o chá, mas o mundo fora da mansão onde trabalha não tem mais espaço para esses serviços ou outros semelhantes, o que leva o robô a uma espécie de “Jornada do Herói” em que um robô que não pode sentir precisa racionalizar sentimentos, transformá-los em código binário, por assim dizer, e, a partir disso, descobrir quem ele é.

Arriscaria dizer que Tchaikovsky teve uma grande ideia para um conto ou uma novela, mas tenho dúvidas se o formato e tamanho de romance completo foi o melhor para a odisseia de UnCharles, mesmo que o autor imprima um bom ritmo à narrativa e faça ótimo uso do ponto de vista robótico, tirando inspiração de uma pletora de autores que trabalharam o mesmo assunto, inclusive e especialmente, claro, Isaac Asimov. Mesmo alterando cenários e criando boa continuidade entre cada parte da história do protagonista, Tchaikovsky perde-se em redundâncias e repetições e, também, como mencionei anteriormente, na tentativa falha de esconder o mistério sobre The Wonk e, também, sobre o mundo exterior à mansão decadente onde o romance começa. A leitura é muito agradável, não tenham dúvida; as críticas socioeconômicas e políticas são ferinas, e as indagações existenciais que ficam na cabeça do leitor quando a última página é virada são pertinentes, mas Modelo de Serviço teria se beneficiado muito de um trabalho editorial que enxugasse com vontade o texto final de maneira a não necessariamente tornar o caminho de UnCharles mais curto, mas sim fazer com que cada grande parte do romance ganhasse mais saliência e ritmo.

Modelo de Serviço (Service Model – Reino Unido, 2024)
Autoria: Adrian Tchaikovsky
Editora original: Tor.com (Tordotcom)
Data original de publicação: 04 de junho de 2024
Páginas: 384

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