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Crítica | Moby Dick (Quadrinhos, 2020)

Uma cuidadosa versão em quadrinhos do clássico literário de Herman Melville.

por Leonardo Campos
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O desenvolvimento da história criada por Herman Melville, em linhas gerais, nós já conhecemos, pois temos a análise de Moby Dick por aqui, texto que pode ser lido na seção de críticas literárias. Mas, para tornar a empreitada reflexiva sobre a HQ em avaliação, retomo alguns pontos específicos do romance. Na aventura cheia de pormenores, o escritor nos traz a saga do Capitão Ahab, um homem que perdeu a sua perna e teve se substitui-la por uma de marfim após o trágico encontro com a baleia cachalote que leva o nome do livro. Irado, tomado por um desejo irrefreável de vingança, o personagem, narrado pelo ponto de vista do jovem Ishmael, leva um grupo de trabalhadores da economia baleeira de Nantucket para algo que supostamente seria uma viagem rumo ao processo de caça e extração do óleo de baleia, mas na verdade, era um plano sagaz de Ahab para destruir a lendária baleia que assustava os mares da época.

Com este mote, o romance apresenta aos leitores uma aventura marítima gigantesca, tratada com o devido respeito nesta tradução intersemiótica em quadrinhos, publicação que também pode ser pensada como um recurso didático de introdução ao complexo universo literário criado por Herman Melville, cheio de referências mitológicas, bíblicas, literárias, políticas, dentre tantas outras que parecem torna-lo um livro fonte de inesgotáveis pesquisas. Destacando as relações entre subordinados e capitães, questões econômicas da indústria baleeira e peculiaridades sobre tópicos temáticos raciais e sociais, os quadrinhos já começam com uma introdução semelhante ao conteúdo do romance: “Me Chame de Ishmael”, uma das mais famosas frases da história da literatura mundial. Temos também uma passagem com o sermão do padre Mapple, focado na jornada de Jonas e seu nêmesis, a lendária baleia bíblica, numa tradução que obviamente condensa passagens para dar conta dos principais pontos reflexivos de sua base literária.

Eficiente em seu uso de onomatopeias, design de cores para cenas diurnas e noturnas, bem como enquadramentos cuidadosos no estabelecimento de planos gerais e perspectivas mais detalhistas, Moby Dick em quadrinhos cria todo um clima de suspense em suas primeiras páginas, a nos apresentar o Capitão Ahab apenas no sexto capítulo, fazendo a mesma coisa com a baleia, exposta em sua magnitude, quase próximo ao desfecho, animal apontado como infernal, vil, diabólico, dentre outras caracterizações. Nantucket, tanto no texto quanto nas imagens, é destacada como uma área sem vida digna, apenas um pedaço largado de território no extenso solo que mapeia os Estados Unidos. Com vocabulário que o coloca como um ser de supremacia, Ahab é uma figura curiosa nesta tradução, com menor tempo em cena que Ishmael e Queequeg, os personagens mais abordados ao longo das páginas da publicação.

Para emular a linguagem do romance, os editores inseriram, no capítulo 7, uma passagem com curiosidades sobre as espécies de baleias que atravessavam os mares navegados pelos personagens do romance, delineando a importância econômica de cada uma delas para esta indústria refletida, no olhar diacrônico de hoje, como sangrenta e fora de qualquer noção de sustentabilidade. Ademais, em seu desenvolvimento, Moby Dick entrega ao leitor 17 capítulos, alinhados com um prólogo e um epílogo. Há, assertivamente, a predominância dos tons azulados, numa mescla com passagens amareladas, indicativas da presença de velas, raios solares, dentre outros elementos que significam luz, em associação com os caudalosos oceanos atravessados pelos tripulantes do Pequod. Ademais, algo que pode ser observado com muito destaque nesta versão em quadrinhos é a maneira como Queequeg e outros personagens não estadunidenses são expostos na aventura.

Há um cuidado em reforçar a “diferença” do “outro”, tido como pagão, “dono de atos grotescos e estranhos”, também “exóticos e fascinantes”, algo muito marcado no livro que traz constantemente o tópico temático a ser mais desenvolvido adiante, um dos tantos temas do polêmico romance do século XIX. Selvagens, pagãos e idólatras. Assim é a descrição do escritor em relação aos demais povos representados ao longo das volumosas páginas bastante descritivas do livro. Moby Dick é um romance que serve como ponto de partida para delinear a visão imperialista de Herman Melville, contemplada nas imagens e diálogos da HQ por meio das estratégias de composição dos personagens “não civilizados”, isto é, aqueles que não fazem parte da supremacia branca estadunidense, um país em processo de formação e consolidação de sua postura imperialista e bélica, vigente ainda na contemporaneidade. Com um narrador que se posiciona de maneira a representar o alter-ego do escritor, o romance redescoberto no século XX e traduzido para suportes semióticos diversos foi publicado numa época ainda fincada nos absurdos da escravidão. Precisamos lembrar que em seu lançamento, no ano de 1851, faltavam ainda doze anos para o processo abolicionista, em 1863.

Desta maneira, a visão do autor é registrada nas páginas coloridas desta tradução, fidedigna ao que está marcado lá, no clássico romance. Muitos especialistas da obra-prima de Melville descrevem o quão a história desenvolvida em Moby Dick é eficiente no sentido de nos fazer compreender a visão que os ditos civilizados tinham em relação ao “outro”. Mesmo nos momentos onde o narrador reconhece o olhar preconceituoso em relação ao próximo, é importante destacar que ainda assim, há uma postura de superioridade, algo do tipo “nós fornecemos o cérebro e o resto do mundo provê generosamente os músculos”, passagem não exatamente descrita na HQ, mas diluída por meio dos diversos planos e movimentos desenvolvidos pelos personagens ao longo de suas breves, mas interessantes 72 páginas de conteúdo. Se no romance podemos ler e criar as nossas imagens, esta versão criada por Moacir Rodrigues e roteirizada por Lúcia de Nóbrega imprime um olhar diante desta abordagem imperialista do romance, aqui transformado em narrativa visual, publicada pela Ciranda Cultural em 2020, assertiva em sua proposta de entrega, para o público mais jovem, histórias complexas como a que podemos vislumbrar na aventura filosófica criada por Melville.

Moby Dick (Brasil, 2020)
Roteiro: Lúcia de Nóbrega
Arte: Moacir Rodrigues
Editora: Ciranda Cultural
Páginas: 72

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