Em primeira síntese, o famoso diretor Sam Pollard consegue articular e mostrar a rivalidade em que consiste o título do documentário, entre Martin Luther King e o FBI, e a compreensão política, social e talvez pessoal que existia desde o marco da Marcha em Washington, em 1963, até o assassinato do pastor batista em 1968. Mas ao mesmo tempo em que o documentário serve como mediação com o espectador para uma profusão de informações e conexões que explanam o incômodo do Serviço de Inteligência dos EUA com King e os movimentos pacíficos em prol dos direitos humanos dos negros, usando um recheado material de arquivos recém-liberados pelo governo americano e uma montagem organizada de discurso, o centro moral provocado pelo FBI contra o indivíduo MLK é sempre mencionado com medo. Dramatiza-se, assim, a imagem culposa nos meandros morais do líder evangélico, mas com um temor ou incapacidade contraproducente ao desenvolvimento narrativo dilatado do documentário que parece fugir do assunto.
Num tom televisivo da abertura e com alguns tons que soam sensacionalistas durante o documentário, Sam Pollard almeja criar um grande diálogo de entrevistados que narram simultaneamente agregações ao fato do FBI perseguir Martin Luther King na década de 60. Nesse sentido, há uma técnica complexa de agrupar tantas verbalizações e imagens constantemente, perseguindo uma linha narrativa. Por isso, o diretor opta por abrir margens de foco, o que num projeto gráfico representaria uma seta que foge do objetivo para ser melhor encorpada para voltar e acertar o alvo. Ao menos é essa proposta aparente quando as informações são postas nos variados campos ideológicos, raciais e populares que explicariam a obsessão do FBI com o pastor negro. Dessa forma, nessa premissa documentarista de materiais de arquivo audiovisual, textuais e fotografados com narrações opinativas e intelectuais que dão moralidade ao que se mostra, mais e mais coloca o trabalho de Sam Pollard um vivo material de qualidade histórica e também especulativa.
Em nenhum momento o filme dispensa sua característica especulativa principal, apesar das fugas temáticas: tratar o que foi liberado das instâncias do FBI sobre a investigação de Martin Luther King. O filme se trata dessa urgência, comentando ainda que faltam as fitas gravadas dos grampos feitos pelo FBI na casa do pastor. A densidade dramática em tratar as imagens dos documentos sobre a investigação em tela soam ansiosas, como um suspense a ser desvendado.
Assim, o documentário engole muitas vértices na história que quer contar para demarcar algumas elaborações consistentes que moldam as justificativas plausíveis, ainda que injustas – como o documentário naturalmente diz pelo tom de voz dos entrevistados e pela maneira de apresentação enfática -, do FBI acusar o “messias negro”, como Edgar Hoover, líder do FBI, referiu-se a Luther King. Essas vértices ajudam o espectador a não se perder, pois realmente acontecem tangenciamentos temáticos para desenvolver por que o FBI criaria a ideia de que King era comunista, por que o tratariam como mentiroso, até chegar em minúcias mais pessoais, menos políticas e ideológicas para encontrar um podre midiático. E, estranhamente, o documentário parece se manter nessa base midiática.
A estranheza se vale pela imponência de criticar o FBI pelas suas condutas morais dentro do campo político e ideológico, por vezes tirando MLK de foco e se aprofundando na mitologia do FBI e de seus algozes na sociedade americana. Há toda uma articulação profunda sobre a mitologia do FBI, como o cinema e o trabalho de Edgar Hoover construiu um império simbólico conservador, branco e altura de 1,80m com homens que protegiam os EUA de ameaças comunistas e de qualquer problema que ameaçasse a família e os bons costumes. Isso contribui para a compreensão de um racismo estrutural que facilmente poderia se desenvolver, e por isso é criada uma desconfiança de King, apenas por ser negro, mesmo com os movimentos pacifistas, diferentemente dos Panteras Negras, Malcolm X e Angela Davis.
A partir disso, os meandros pessoais achados sobre a infidelidade no casamento de Martin Luther King, o conflito central do documentário, seria explicado como a busca do FBI por um crivo racial, desenvolvido desde Nascimento de Uma Nação, que demoniza e estereotipa negros como machistas, bagunceiros e inescrupulosos. Dentro de uma crítica racial na investigação do FBI, ou até mesmo na cegueira de dizer que um ex-comunista era impossível de conceber, quanto a duvidar de King por ter um contato que havia participado do partido comunista, tudo isso, junto à figura problemática de Hoover, alcança uma pergunta midiática, mas não moral sobre o principal conflito factual descoberto sobre o pastor batista, defensor dos direitos humanos dos negros e ganhador do Nobel da Paz.
A infidelidade de Martin Luther King, como mesmo o documentário coloca em xeque, pressupõe que não apaga nada das ações que King fez pelos negros nos EUA. As ações do ser humano não serão menos legítimas por um ponto individual de sua vida pessoal, mas ao mesmo tempo em que há esse disclaimer sobre o suspense criado em cima da investigação do FBI que não foi completamente liberada (apenas em 2027), o filme se evidencia como incapaz de comentar de fato sobre o que o conflito do filme aponta: a vida pessoal de MLK. Embora haja uma visão próxima de um dos entrevistados, Clarence B. Jones, que convivia com King, ao menos no documentário, a discussão moral gritante de um pastor evangélico, que lutava pelos direitos humanos dando “Glória a Deus” na Marcha de Washington como representante religioso, parece um elefante branco no trabalho de Sam Pollard.
Apesar de isso ressoar como uma exigência pessoal de quem escreve esta crítica, vale ressaltar que o próprio documentário em sua narrativa sugere a discussão em emergência pela contextualização de King, as incitadas morais que faziam nos programas de televisão sobre ele conhecer partes obscuras de Nova Iorque, as representações visuais e verbais da esposa, Coretta Scott King, ao lado dele, ou até mesmo sua visão como pastor.
Ou seja, o documentário entende a relevância da infidelidade para a imagem de MLK, mas soa como uma bomba que a narrativa trata apenas como mais um termo midiática, algo semelhante ao que um entrevistado diz sobre como ele vê a história de Martin Luther King, e ele responde que sempre muda. Essa sua frase parece corresponder a esse grande problema da infidelidade, que o coloca, segundo os entrevistados, como um ser humano complexo, como qualquer outro que tem seus erros. Mas as sugestões matrimoniais, religiosas e morais do pastor nunca se tornam argumentativas, e sim implícitas, mesmo que factuais.
Por fim, cria-se um impasse sobre a escolha de Sam Pollard para propor uma narrativa dilatada de informações. Um proveito documentarista de investigar novos materiais e apresentar logo uma defesa discursiva contra ataques ao movimento negro, ou um artifício para não trabalhar com algo que por vezes pouco parece ser visto além de uma cultura negra americana: a moral religiosa e determinante para a ética cristã empregada no que King desenvolvia nos seus manifestos.
MLK/FBI (MLK/FBI) – EUA, 2020
Direção: Sam Pollard
Roteiro: Benjamin Hedin, Laura Tomaselli
Elenco: Martin Luther King, J. Edgar Hoover, David Garrow, Clarence B. Jones, Charles Knox, Donna Murch, Marc Perrusquia, Andrew Young, James Comey, Beverly Gage, Beverly Gage, Arthur Goldberg, Merv Griffin, Lyndon B. Johnson, Kenneth Keating
Duração: 104 minutos