Home QuadrinhosArco Crítica | Mister No – Vols. 3 a 5: O Último Cangaceiro, Morte no Sertão e A Vingança do Gringo

Crítica | Mister No – Vols. 3 a 5: O Último Cangaceiro, Morte no Sertão e A Vingança do Gringo

Mister No e uma tentativa de retomada do cangaço.

por Luiz Santiago
299 views

Começando na segunda parte da edição #3, o presente arco de Mister No ajuda a definir com bastante detalhe os caminhos narrativos da série e, principalmente, a personalidade do protagonista. A cara anti-heroica do piloto, seu impulso básico para assumir compromissos com pessoas, seu trauma da guerra e da violência, seu humor ácido e sua ironia, tudo isso aparece aqui, numa história que começa despreocupada, com Jerry Drake levando um golpe de um tal Sr. Hannicut — que contratou a viagem de Manaus a Salvador, mas não tinha dinheiro para pagá-la — e termina com uma reflexão socialmente relevante sobre a situação da população pobre no Nordeste do Brasil, o uso desmedido do poder dos latifundiários, que compram civis, militares e políticos para servirem aos seus interesses; e sobre as muitas contradições culturais e até comportamentais que caracterizam a população brasileira.

No início da história há uma sequência bem humorada (mas um tanto trágica) de desventuras de Mister No em um “dia de azar”. Começando com um passageiro espertalhão que o contrata, mas não paga, e terminando com uma contratação bastante valiosa, mas que termina em ameaças e abre todo o precedente violento que será explorado posteriormente. Nessa brincadeira, o roteiro de Guido Nolitta vai cada vez mais “afundando” o piloto em uma lama social da qual sairá a necessária reflexão da aventura, apontando um problema que ainda persiste no Brasil e não apenas na região Nordeste, porque se mostra em diferentes formas de posse, tráfico de influência e uso de forças oficiais ou milicianas para manter um determinados status quo. A bem da verdade, encontramos isso em todos os países latinos, onde a terra sempre foi motivo de grandes brigas.

Por mais que Mister No tente estampar uma faceta durona e despreocupada, ele não é um personagem que a gente entende como bruto ou egoísta em todo o tempo. Ele não é exatamente um “herói”, mas seu comportamento, seus vícios e sua forma de enxergar o mundo são simplesmente o reflexo de alguém que sofreu demais, que quer aproveitar a vida e que tem um bom coração, dispondo-se a ajudar ou vingar aqueles que sofreram algum tipo de injustiça. Esse, aliás, é um ponto muito importante que nos ajuda a entendê-lo melhor. Mister No não suporta injustiça e traição, principalmente porque quando inseridas no contexto do personagem, esse tipo de atitude geralmente leva à morte ou a consequências muito sérias, não apenas para a vítima, mas para diversas outras pessoas em seu ciclo social.

Gosto muito da representação de Guido Nolitta para a questão do cangaço (que aliás ele revisitou em 1988, no Especial O Rei do Sertão). Essa organização é realmente vista com olhares e análises históricas bastante plurais, e o autor coloca isso de forma literal no roteiro, sabendo trabalhá-la dentro dessa premissa ao longo de toda a história, algo que, para mim, é um dos melhores pontos do arco. Notem que tanto entre os neo-cangaceiros (a trama se passa em 1953 — e isso está bem definido, porque o Capitão Corisco diz que se passaram 15 anos desde a morte de Lampião, que ocorreu em 1938) quanto entre os fazendeiros existem pessoas de diferentes índoles. Evidente que por uma questão história e simplesmente por interesses econômicos e sociais colossalmente diferentes (não tem jeito: nada define melhor sociologicamente esse tipo de relação do que o original conceito marxista de “luta de classes“), os grandes latifundiários acabam assumindo o papel de vilões, e são representados aqui pelo inescrupuloso Coronel Fonseca.

O Último Cangaceiro mostra a Mister No que o Brasil não é um país para fracos. Há uma marca muito particular de nosso povo que aqui é tratada de maneira quase intuitiva pelo autor (não sei dizer se ele teve acesso a ela, na literatura, ou de ouvir falar), explorada no icônico Raízes do Brasil. Um livro que, infelizmente, a maioria das pessoas não leram e simplesmente repetem o conceito de “homem cordial” como se ele significasse exatamente essa superfície, com uma ideia de bondade, de gentileza pura e simples… que não tem nada a ver com o que o autor quis dizer.

O que o grande Sérgio Buarque de Holanda explora em seu livro é que o brasileiro, em essência, procura mascarar conflitos, explorações e violências através de uma faceta de cordialidade (ou seja, levando para o coração, através de algum tipo de afeto/aproximação íntima, suavização de algo muito ruim), chamando determinados atos desprezíveis de “brincadeira” ou “piada“; procurando estabelecer um laço de proximidade para tirar vantagem de uma situação e sempre personalizando tudo, abrindo, na raiz das ralações, a porta para todo tipo de corrupção. Nesta aventura, Mister No conhece um lado da tal cordialidade brasileira. A cena de conversa entre Fonseca e o militar responsável pelo massacre dos cangaceiros é um perfeito resumo sociológico desse tipo de relação, que ganha ainda outros exemplos quando o Coronel tenta livrar-se de seu destino subornando Mister No, procurando criar com ele um laço de cumplicidade, uma relação pessoal, um ícone de cordialidade. O americano é definitivamente marcado pelo que passa aqui. Essa história, portanto, serve como pedra angular para toda a saga, muito mais do que Mister No e Amazônia, a dupla inicial de aventuras da série regular personagem.

Mister No – Vols. 3 a 5: O Último Cangaceiro e Morte no Sertão (L’ultimo cangaceiro / Morte nel Sertão / La vendetta del gringo) — Itália, agosto a outubro de 1975
Roteiro: Guido Nolitta
Arte: Franco Bignotti
Capas: Gallieno Ferri
269 páginas

Você Também pode curtir

Este site usa cookies para melhorar sua experiência. Presumimos que esteja de acordo com a prática, mas você poderá eleger não permitir esse uso. Aceito Leia Mais