Nesta terceira edição da série Mister No Especial, temos uma história do fortalecimento de um movimento separatista no Nordeste que traz à tona as mais diversas contradições do Brasil, representadas na pessoa de um grande fazendeiro, de um grupo de novos cangaceiros, de cidadãos comuns e de um padre, todos falando algo diferente sobre o símbolo escolhido para essa tentativa de revolução: a cabeça decepada de Lampião.
Eu sempre achei muito interessante a forma como Guido Nolitta representava o Brasil em suas histórias, especialmente quando opunha forças de distintos grupos sociais e/ou políticos. Aqui em O Rei do Sertão ele começa com uma chegada despreocupada de Mister No à Bahia, reencontrando o taxista Getúlio (personagem que apareceu pela primeira vez em Magia Negra) e depois Miranda, uma antiga namorada. Após os velhos apaixonados se encontrarem, à noite, acompanhamos uma ação em paralelo acontecer no Museu Antropológico Estácio de Lima e, a partir daí, o enredo toma a sua via principal, colocando Mister No em uma situação complicada e que ele não pode recusar.
Toda a ação aqui tem o seu mérito, especialmente em cenas noturnas, que são os melhores momentos da arte de Roberto Diso, mas o que se destaca para mim, no volume, é a costura social feita pela cabeça de Lampião. Ela é um grande símbolo de luta, mas dependendo dos interesses e classe dos indivíduos ou grupos que a possui, esse símbolo pode ser direcionado para lados completamente diferentes. É como reflete o próprio Mister No no final, falando mais para a ideia, para o símbolo do que para a personagem histórica: quem foi, de fato, Lampião? Foi um reacionário, um representante do diabo, um revolucionário ou uma espécie de santo? Para cada um dos grupos que o protagonista encontra, Lampião significa uma coisa diversa, representa uma ideia, um mundo diferente. E é por isso mesmo que nenhum deles deve ter a posse desse símbolo.
O Rei do Sertão acaba sendo uma aventura sobre o uso da memória histórica de um país, de um povo, como impulso para a criação de algo novo. O item macabro de um museu que serve para mobilizar as massas e que é trabalhado em um enredo de ação, tendo um protagonista que não quer se meter nos negócios do país, mas acaba sendo arrastado para as mais diversas situações concernentes a essa história. No desfecho, uma grande ironia da política nacional também aparece: o governador do Estado é irmão do fazendeiro que preparava o movimento separatista e diz que vai apenas “dar um sermão” no irmão. Nada de punição, nada de polícia. E aí entendemos perfeitamente o ponto da coisa toda. Bem a cara do Brasil, não é?
Speciale Mister No #3: Il Re del Sertão (Itália, julho de 1988)
Publicação original: Sergio Bonelli Editore
No Brasil: Editora 85 (2019)
Roteiro: Guido Nolitta
Arte: Roberto Diso
Capa: Roberto Diso
164 páginas