Às vezes eu acho introduções superestimadas, especialmente quando obras caem num didatismo exacerbado para apresentar a premissa ao leitor. Claro que vai de cada obra, mas sempre acho interessante quando romances jogam o leitor na narrativa sem qualquer cuidado mesmo, até nos assustando pela velocidade que somos absorvidos na história. Não sei se é por causa das minhas experiências literárias, mas raramente topei com livros com essa abordagem mais, digamos, imediatista. Misery definitivamente enquadra-se nesse estilo direto de narrativa, no qual o mestre Stephen King toma a atenção do leitor na primeira página ao nos situar do pesadelo de Paul Sheldon, um escritor famoso que sofreu um acidente de carro e foi salvo por Annie Wilkes, sua fã número um… perigosamente louca.
Misery, como a própria tradução brasileira do título da adaptação cinematográfica – e de algumas versões do livro – expõe, é uma leitura obsessiva, independente do ponto de vista. Seja a busca por sobrevivência do protagonista, a obsessão de Annie com o artista, ou até mesmo a nossa impossibilidade de largar a leitura, a obra de King não apenas mergulha o leitor com rapidez no abismo, como também nunca deixa ninguém sair. Nosso protagonista quebrou as duas pernas no acidente de carro, e sua salvadora, uma enfermeira completamente biruta, mantém Paul como seu prisioneiro, iniciando uma sórdida jornada de cárcere privado. Dois personagens, um quarto e 328 páginas não parece uma receita de sucesso, mas King faz dar certo, muitíssimo certo.
A grande qualidade da narrativa está na maneira como o autor constrói conflito, pois o ambiente limitado poderia restringir o desenvolvimento da história, especialmente pensando no tamanho do livro, mas King cria uma estrutura sem espaço para pausa ou respiro narrativo. Chega a ser estressante a maneira como o escritor cadencia a história, proporcionando uma experiência sempre em alerta ou receosa da nossa parte, no qual a dor de Paul fica em evidência a todo momento, realmente a todo momento. Aliás, sempre que o autor diminui o ritmo um pouco, muitos desses momentos para humanizar a Annie ou trazer um pouco de contexto do passado de Paul, a história pausa o terror físico para trazer o psicológico, na disciplinada experiência claustrofóbica e segmentada de King.
Para compor isso, dois grandes elementos estão sempre em evidência na história: a ambientação e a dinâmica dos personagens. O primeiro é resultado do já citado espaço limitado da trama, o qual King utiliza a seu favor, dando um significado a cada objeto. Uma máquina de escrever demoníaca, uma cama que esconde objetos, um grampo libertador, o remédio que alivia a dor, entre outros, cada pedacinho do quarto ou componente de sobrevivência de Paul é potencializado, quase se tornando personagens, proporcionando um belo cenário de enclausuramento e terror psicológico com o medo da morte, vício, obsessão e tortura trocando turnos no sofrimento de Paul.
Falando do nosso protagonista, primeiramente senti o personagem como um “papel branco” na obra. Ele está ali sofrendo, e essa angústia é muito bem transposta, mas a idealização do personagem era muito mais de uma ferramenta para o horror do que um protagonista propriamente dito. Contudo, à medida que a narrativa avançava, o personagem foi ficando mais interessante além da dor, pois ele acaba sendo um exercício pessoal e artístico de King. Além de funcionar como um olhar interno do escritor, grande parte do arco do personagem, se é que podemos chamar de arco, gira em torno da literatura. Bloqueios criativos, visão da indústria, vícios pessoais, disciplina literária, entre outros temas sobre a Arte de King, num belo olhar metalinguístico crítico do autor para si mesmo e para a Literatura como um todo.
Dito isso, todos os holofotes são de Annie. Uma personificação da obsessão, da loucura e da malignidade, a personagem é, talvez, o melhor “monstro” de história de horror que tive o prazer de consumir. O fato dela ser humana, e bastante “humanizada” em alguns momentos, torna sua caracterização ainda mais horripilante. Seja nos momentos de carnificina ou em diálogos malucos sobre seu amor, compaixão e cuidado para com Paul, até humorísticos em determinados segmentos, a maneira como King cria Annie, respaldado por um horror possível e consequentemente real, proporciona uma dimensão para além do maníaco à personagem, o que torna o tom da história ainda mais aterrorizante.
Misery é a jornada dolorosa de Paul Sheldon nas mãos da terrível Annie, uma das mais icônicas personagens de King, e do gênero do horror por completo, tanto literário como também no Cinema. Cheia de camadas, desde a psicopatia a solidão, Annie é o livro, roubando a cena em uma das melhores obras do autor. King, acima de tudo, demonstra controle do seu ambiente, sabendo como segmentar e absorver o leitor num terror físico e psicológico em um ritmo frenético e estressante, o qual é difícil digerir muitos momentos da história, em uma experiência trágica, obsessiva e, acima de tudo, violentamente memorável.
Misery (Louca Obsessão) – EUA, 1987
Autor: Stephen King
Editora original: Viking
Data original de publicação: 8 de junho de 1987
Editora no Brasil: Suma; 1ª edição
Data de publicação no Brasil: 22 de abril de 2014
Tradução: Elton Mesquita
Páginas: 328