Para entender a história e contextualizar melhor a figura do curioso Miracleman, é preciso considerar os eventos que envolvem outro personagem, outra editora e outro país de produção. Em 1940, Bill Parker e C.C. Beck criaram, para a Fawcett Publications, um personagem de nome Capitão Marvel (futuramente rebatizado de Shazam) que se tornaria um verdadeiro fenômeno de vendas tanto em seu país de origem (Estados Unidos) quanto no Reino Unido, onde era publicado pela editora Len Miller & Son. Irritada com o comportamento arrasa-quarteirão de Shazam, a National Comics (futura DC) abriu um processo contra a Fawcett alegando que seu meninão vermelho era um plágio do Superman. O processo se desenrolou por anos e acabou minguando as finanças da Fawcett que, em 1953, parou de publicar as histórias do Capitão Marvel. Em 1973, a DC comprou a falida inimiga e, no melhor estilo “a vontade de rir é grande, mas a de chorar é maior“, herdou o Capitão Marvel para as suas fileiras (em 2012, mudariam oficialmente o nome dele para Shazam, por conta de OUTRO Capitão Marvel, o da editora concorrente). Na Europa, a Len Miller se via em maus lençóis com a interrupção do título estadunidense, já que o Capitão Marvel era o seu carro-chefe de vendas. E foi nesse contexto que surgiu o roteirista e desenhista Mick Anglo, que em 1953 criou o Marvelman, uma cópia do Shazam, cujas publicações permaneceram nas bancas até 1963.
Em 1982, nas páginas da revista britânica Warrior, Alan Moore (hoje grafado como “O Escritor Original” nas republicações de Miracleman, depois da briga colossal que teve com a Marvel Comics) fez uma transformação no personagem, tirando-o do status inocente, infantil e simplificado da Era Clássica de Mick Anglo, e elevando-o a um patamar de aventura lírica, social e profundamente rica em conceitos de desconstrução da figura dos super-heróis. Notem que estamos falando de uma obra de 1982. Naquela época, não existia uma linha de produção massivamente conhecida que questionasse a figura dos mascarados poderosos e propusesse um olhar diferente sobre a atuação desses personagens em seus Universos. Lembremos que foi o próprio Moore, alguns anos depois, especialmente em Watchmen, quem cristalizou essa visão disruptiva, caminho então copiado sem qualquer critério por um sem-número de autores, banalizando algo que era para ser o ponto divergente, o ponto criticamente interessante, sério e maduro das histórias de super-heróis.
Em Sonho de Voar, temos a reintrodução de Miracleman aos holofotes da população do Reino Unido, mas o ponto de partida do arco é uma aventura curta e um tanto chatinha escrita por Mick Anglo e desenhada por Don Lawrence. Essa história, porém, tem uma função estratégica na composição do arco, porque serve como introdução distanciada, em outra linguagem, para personagens e ambientação que veríamos através de um prisma completamente diferente nas páginas seguintes. Michael “Mike” Moran é um jornalista que faz trabalhos autônomos. Ele vive uma vida comum, ao lado de sua esposa Liz. Até que, numa certa situação de crise, ele observa a palavra “atomic” espelhada, e acaba lendo-a, impulsionado por uma possível lembrança. Talvez como empurrões de uma sequência de pesadelos recentes, talvez por algo escondido em seu cérebro. “Kimota” era a palavra mágica. A palavra que transformava Mike em Miracleman. Dezoito anos depois de um trágico “evento com uma bomba atômica“, ele recobrava a memória e descobria quem realmente era.
Sonho de Voar serve como um arco introdutório em todos os sentidos, e é quase inacreditável a quantidade de informações e mudanças que o autor faz em relação aos personagens já estabelecidos, ao mesmo tempo que cria novos e impactantes opositores para o “recém-acordado” Miracleman. Conhecemos não apenas personagens importantes do passado (com destaque para o Doutor Gargunza e Kid Miracleman), mas também encontramos curiosos vilões do presente (como Sr. Cream e Big Ben), além de um roteiro com uma visão do futuro, na excelente Um Ardil do Passado; e duas sagas paralelas para explicar a existência e a vivência de um grupo muito especial de seres, em Somos os Ferreiros Cósmicos e Dança Fantasma. No decorrer da trama, o leitor vai se deparar com um texto inteligente na construção do suspense e da expectativa diante do que acontece a seguir (nada, nessa história, é previsível), mas também pode encontrar alguma barreira no exagerado lirismo das narrações. Esse tipo de linguagem exige não só mais atenção do público, como também um nível de interpretação mais rebuscado, dada a linguagem cheia de metáforas e símbolos que não podem ser ignorados, caso se queira realmente entender o que está se passando ali.
Este é o meu primeiro contato com Miracleman, depois de muitos anos ouvindo falar de passagens da obra e sobre toda a polêmica de bastidores. Trata-se realmente de um título marcante, escrito com esmero um tanto hermético, mas não exatamente inacessível (entra aqui a atenção e a interpretação que citei no parágrafo anterior). O projeto artístico de Garry Leach e Alan Davis para a publicação é muito bom, mas não consegue fazer muita coisa em termos de identidade visual criativa (ou mesmo na diagramação, a parte menos interessante do título), dado o formato da mídia em que a saga era publicada. Não estamos falando de um título próprio, numa revista onde o projeto visual podia ser livremente escolhido pelos artistas envolvidos. A revista Warrior, como qualquer antologia de quadrinhos, tinha um padrão de organização interna para garantir que as aventuras atingissem o número de páginas necessárias em cada edição, o que não limita tanto o texto, mas certamente tinha impacto um tanto negativo na arte — não a ponto de torná-la ruim, mas a ponto de amarrá-la na ordenação estética e no ritmo visual das ações, barreiras que não conseguiram anular a boa proposta dos artistas ou tornar Miracleman menos importante.
Miracleman: Sonho de Voar (A Dream of Flying) — Reino Unido, 1982 – 1985
Publicação original: Warrior #1 a 10 / Miracleman #1 a 4 / Marvelman Special #1
Roteiro: Mick Anglo (apenas o prólogo, na história Os Invasores do Futuro, publicada em 1985), Alan Moore (O Escritor Original)
Arte: Don Lawrence (a história de Mick Anglo), Garry Leach (#1 e 2), Alan Davis (#3 e 4)
Cores: Steve Oliff
Letras: Chris Eliopoulos
Capas: Joe Quesada, Danny Miki, Richard Isanove, Alan Davis
Editoria: Cory Sedlmeier, Jeff Youngquist
No Brasil (edição lida para esta crítica): Panini, 2014 – 2015
Tradução: Levi Trindade, Jotapê Martins
176 páginas (contando apenas a história principal, sem extras)