Se em Sonho de Voar, Alan Moore iniciou um processo de desconstrução do Miracleman, apresentando um conflito revelador de identidade para o personagem e trazendo à tona uma nova visão para as suas vivências, narradas originalmente por Mick Anglo; aqui, em A Síndrome do Rei Vermelho, iniciamos um processo lento de reconstrução, ainda em meio a uma grande crise na vida do personagem. Como estamos falando de um “herói familiar” (e que falo disso, não consigo deixar de pensar no Homem Animal, em termos comparativos, especialmente na fase de Grant Morrison), há muita coisa a ser considerada em meio à reconstrução, principalmente porque Liz está grávida, o que será, inclusive, o impulso para o avanço da problemática central deste arco, sobre a qual discutirei mais adiante.
Eu vejo esse drama como um processo relativamente desengonçado de terapia, no bom sentido da comparação, claro. Michael Moran é, muitas vezes, colocado no centro das atenções e se revela alguém consumido pela grandiosidade de seu Ser interior, bem diferente do impulsivo jornalista sem emprego fixo que conhecemos no início do arco passado. É como se, após descobrir quem realmente era, Michael se visse consumido pela intensidade e grandiosidade do alter-ego, algo que os artistas desse volume reforçam através de representações do personagem cada vez mais “acabado” nos desenhos, em oposição ao brilho e vitalidade do Miracleman. É um contraste interessante com um impacto curioso no leitor, que tende a rejeitar a figura humana e abraçar o herói, até porque, Moore também faz com que vejamos a fraqueza e a postura mais “encostada e paralisada” de Michael, o que definitivamente não acontece com o seu lado heroico sem movimentando a história.
A melhor coisa aqui, porém, não é o arquétipo melodramático que o enredo abraça, mas sim a expansão de origem do protagonista, que vimos de maneira parcial em Sonho de Voar, e que aqui chega à semente do projeto que deu origem ao Miracleman e sua família. É essa viagem ao passado que empresta sentido à ação de Gargunza no presente, sequestrando Liz, grávida, e tentando seguir com o projeto que sempre quis realizar: tornar-se imortal. No passado, a sequência em que vemos a formação das ideias fantasiosas que tomariam a mente da Família Miracleman é incrível. Um sonho que o cérebro de Michael tenta decodificar, mas é impedido por Gargunza… até que esse impedimento não funciona mais e ele finalmente se liberta. No presente, eu achei a intenção do antagonista convencional demais. Entretanto, pensando na origem desse material, o tipo de homenagem que faz e como Moore se apropriou do histórico ponto de partida para dar mais sustança ao escopo clássico do personagem, acho que dá para entender o caminho por ele trilhado. Nem sempre isso aparece de maneira redondinha nas páginas, mas pelo menos há coerência na editoria do título e inteligência no encaminhamento do roteiro.
Infelizmente, a história foi encurtada por um problema na produção das edições, pela Eclipse Comics, em 1986. Vou reproduzir exatamente o que diz na edição, onde uma fantástica interação metalinguística acaba reproduzindo histórias do passado, como flashback, para completar o número de páginas da revista Miracleman #8. Diz o texto: “como vocês sabem, a redação da editora Eclipse… e toda a cidade de Guerneville… foram inundadas nessa primavera, quando o rio Russo transbordou. Ninguém se feriu… mas uma das baixas foi o prazo de Miracleman. Foi pra casa do cacete“. Desse ponto em diante, sentimos uma pequena queda na estrutura da trama, exatamente porque falta espaço para o autor explorar o que queria, e dar conta do complexo contexto em torno dos aliens metamorfos que cercam os personagens; do andamento da jornada de Michel; e do atual estado de Jonathan James “Johnny” Bates, o Kid Miracleman, que está internado em uma clínica e, ao que tudo indica, resolve agir, sem saber que está seguindo os impulsos do poderoso ser maléfico preso em sua mente.
A Síndrome do Rei Vermelho traz uma gráfica cena de parto, algo que eu nunca tinha visto, com esse nível de detalhes, em uma história em quadrinhos — ainda mais numa HQ de super-herói! É uma cena muito bonita, com um roteiro que faz uma reflexão densa sobre o milagre da vida e como ela pode ser manipulada por alguns poderosos do mundo. Ao cabo, o autor conclui que a felicidade e a surpresa que um bebê pode trazer a uma família — e à existência, como um todo — é inestimável, incalculável e imprevisível. Eu terminaria gostando bem mais do arco, em seu grande sentido, se o autor tivesse tido tempo de explorar o lado filosófico que traz em Cenas de Natividade, encerrando com chave de ouro o ciclo de criação que abriu no início: da origem do pai-herói… à origem da filha com capacidade de manipular as emoções da mãe.
As surpresas deixadas como cliffhanger de A Síndrome do Rei Vermelho são muito boas, e prometem um ponto final instigante à fase de Alan Moore escrevendo para esse personagem que tomou um banho das novidades duras da vida, e passou de uma “cópia um tanto boba de Shazam” para um “intrincado herói familiar” envolvido em um drama intergaláctico, podridão política da Guerra Fria e experimentos científicos questionáveis.
Miracleman: A Síndrome do Rei Vermelho (The Red King Syndrome) — Reino Unido, 1983 – 1986
Publicação original: Warrior #12 a 21 / Miracleman #4 a 10
Roteiro: Alan Moore (O Escritor Original)
Arte: Alan Davis, John Ridgway, Chuck Austen, Rick Veitch
Arte-final: Alan Davis, John Ridgway, Chuck Austen, Al Gordon, Rick Bryant
Cores: Steve Oliff
Letras: Joe Caramagna
Capas: Alan Davis, Ronnie del Carmen, Alex Maleev, John Romita Jr., Tom Palmer, Paul Mounts, Dale Keown, Dave Gibbons, Adam Kubert
Editoria: Cory Sedlmeier
No Brasil (edição lida para esta crítica): Panini, abril a setembro de 2015
Tradução: Levi Trindade, Jotapê Martins, Fernando Lopes
144 páginas (contando apenas a história principal, sem extras)