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Crítica | Millennium Mambo

A solidão de Vicky pela capital.

por Frederico Franco
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Falar sobre solidão é ter em mente, antes de qualquer digressão, que se trata uma vivência extremamente íntima e subjetiva. Não existe uma fórmula única e indivisível daquilo que se entenda com estar só. Se não há nem mesmo uma precisa definição, não é possível haver uma espécie de representação ideal, seja no cinema, na literatura, nas artes plásticas ou no teatro. São infinitas as possibilidades de explorar a solidão dos personagens ou, quem sabe, do próprio artista. No cinema são inúmeras tais tentativas, partindo desde Ozu até Varda. Uma das formas de explorar a solidão é pautada, justamente, por uma confusão perante o advento avassalador da contemporaneidade e de sua introdução de novos estímulos sociais para a população. Encontra-se, portanto, uma espécie de solidão marcada pela impossibilidade de lidar de maneira saudável com o turbilhão de emoções proporcionadas. Aqui, ao invés da clássica definição de solidão (de se encontrar sozinho, isolado fisicamente) surge aquela inadequação de ser engolido por pela multidão, sempre em busca de se adequar dentro do olho do furacão. É perceber no convívio com os outros uma forma de não aceitação.

Em Millennium Mambo somos apresentados a alguém tomado pelas águas do novo milênio e pela opressão criada dentro das grandes metrópoles. Vicky é uma mulher taiwanesa que narra breves passagens de sua vida dez anos atrás, quando ainda era uma adolescente por volta dos dezesseis anos. Ela não é tomada apenas pela grandiosidade da cidade. Durante esse período, a protagonista se vê envolvida por um relacionamento abusivo com Hao-hao, um aspirante a DJ e usuário de drogas que chama a atenção de Vicky por sua intensidade e autenticidade enquanto ser social. A narração expõe as idas e vindas desse relacionamento que marca uma turbulenta passagem da juventude da personagem principal e narradora.

Um dos principais méritos da construção diegética de Hou Hsiao-hsien é lançar o espectador, sem delicadeza alguma, em direção aos espaços sociais e suas situações cotidianas, pontuados por uma forte pujança juvenil. Millennium Mambo tem em sua visualidade um trunfo importante. Estamos dentro de baladas, festas intermináveis repletas com uso de drogas e uma curtição sem quaisquer previsão de fim. A grande marca da direção ao apostar em tais cenários, está no estabelecimento de uma iluminação majoritariamente feita através de intensas luzes de led – sendo, em certos instantes, um elemento de agressão aos olhos do espectador. Mas que não haja engano: o trabalho de fotografia é funcional justamente por essa abordagem nada amigável aos olhos. Durante o decorrer das baladas, com mais e mais luzes, parecemos pertencer a um universo elaborado por Olafur Eliasson ou até mesmo o minimalista Dan Flavin, dois artistas cujo trabalho de iluminação com led é tido como referência artística até hoje.

Por maior que seja essa frenesi social no qual está inserida, Vicky não é exatamente um ser humano que transmite prazer para além das festas. Aquilo que ela joga para o outro é, na verdade, uma idealização daquilo que gostaria de ser fora dessas situações. Com o andar da carruagem, a protagonista, na verdade, é vista cada vez mais como uma jovem frágil cujo relacionamento amoroso só existe para mascarar sua solidão. O apartamento dividido com Hao-hao é definitivamente uma prisão. O sofrimento de Vicky é tamanho que, muitas vezes, a câmera de Hsiao-hsien prefere o desfoque ou o fora de quadro para não machucar o espectador com o sofrer de sua personagem principal. Trata-se, ali, de um espaço opressivo – não pelo lugar em si, mas pela presença intimidadora do namorado que, em vários momentos, deixou claras as intenções de agredir fisicamente a namorada. Ali, atormentada pelos traumas do namoro e por seus próprios demônios, Vicky é obrigada a conviver com a ensurdecedora música reproduzida por Hao-hao, independente do horário ou situação. Existem, no final, rápidos momentos nos quais a personagem principal consegue fugir de seu calabouço e encontrar, finalmente, uma plenitude em sua existência. Em tais exemplos, há uma clara mudança dentro da trilha musical: a música, antes violenta, agora toma contornos suaves, com uma melodia mais sutil, acompanhada por uma cautelosa percussão. A dor, agora, some, dando valor ao etéreo.

Esses fugazes momentos nos quais Vicky consegue sua libertação são momentos nos quais conseguimos ver a protagonista mais próxima daquilo que realmente é além da solidão e das festas. Seja em uma nevasca no Japão ou em uma carona com Jack Kao, uma amizade fraternal: esses instantes são que transformam o sorriso de Vicky maior que o buraco em sua alma. Essas cenas representam uma ruptura tamanha que sequer parecem pertencentes à realidade. Seriam sonhos? Delírios de uma personagem frágil em busca de uma plenitude que cada vez mais parece utopia? Projeções de seus principais desejos? Não sabe. A narradora, ao mesmo tempo, em momento algum afirma estar diante de um relato puramente realista. Reais ou não, esses momentos são confortáveis. E é acalentador ver Vicky sorrir e se desprender da solidão.

Cabem, ainda, pontuações voltadas para a encenação de Hou Hsiao-hsien. Seu trabalho de câmera em nada se preocupa com composições harmônicas ou planos estáticos. Aqui, é valorizada a dinamicidade do cotidiano atribulado de uma juventude nada harmônica. As rápidas e intensas relações interpessoais são recortadas por uma lente que perdoa constantes desfoques e movimentos erráticos, dando maior preferência à expressividade em detrimento do primor absoluto. Contudo, quando Vicky passeia por sua liberdade-sonho, a câmera parece relaxar, como se suspirasse, descansando da intensidade absurda que toma conta do universo apresentado – surgem, aqui, precisos usos de um slow motion, dando espaço para um aspecto mais contemplativo das ações a serem apresentadas.

Vicky não é uma personagem que acaba ao fim de Millennium Mambo: é um retrato de uma juventude perdida entre seus desejos, a confusão polifônica da metrópole e uma solidão marcada pela presença desconfortável daqueles que deveriam se tornar ausências. Vicky, ao finalmente conseguir se libertar daquilo que a prende, assume sua vida como algo não atrelado ao outro, mas a si mesma, transcendendo o estar só.

Millennium Mambo – Taiwan, França, 2001
Direção: Hou Hsiao-hsien
Roteiro: Chu Tien-wen
Elenco: Shu Qi, Jack Kao, Duan Chun-hao, Doze Niu Cheng-Tse, Jun Takeuchi, Yi-Hsuan Chen, Ko Takeuchi, Hsu Hui-Ni, Rio Peng, Pauline Chan
Duração: 106 min.

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