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Crítica | Mil Novecentos e Oitenta e Quatro (1984)

por Luiz Santiago
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Publicado em meados de 1949, o livro Mil Novecentos e Oitenta Quatro, de George Orwell, tornou-se rapidamente uma das obras mais lidas e admiradas da literatura britânica. Criando conceitos como Big Brother, duplipensar e novilíngua e estabelecendo um futuro distópico marcado pela constante observação dos atos dos indivíduos, a obra é centrada em um mundo com uma geopolítica bem diferente da que usualmente conhecemos (três continentes sem divisões políticas existem nessa realidade: Oceania, Eurásia e Estásia – ou Lestásia).

O filme de Michael Radford se passa na Oceania, cidade de Londres, e acompanha a vida de Winston Smith (John Hurt, em uma memorável interpretação), que em dado momento de sua vida se apaixona por Julia (Suzanna Hamilton) e passa a ser alvo de investigação da Polícia do Pensamento (Thinkpol).

Muito já se disse sobre a obra de Orwell ser uma crítica direta ao socialismo ou ao Partido Trabalhista Britânico, mas o autor, em carta a Francis A. Henson (posteriormente reproduzida na revista Life e no The New York Times Book Review) aponta que sua crítica é diretamente a qualquer forma de totalitarismo, independente de sua base ideológica. Nesta adaptação de Michael Radford, a ideia geral do autor é preservada, pois vemos nuances socialistas, fascistas e outras manifestações comunitárias, políticas e sociais engolfadas pelo totalitarismo do Grande Irmão que está de olho em tudo.

A semelhança do texto de Radford com o de Orwell é grande e a escolha dos eventos se assemelham bastante às do livro, salvo certas passagens relacionadas à guerra entre os blocos continentais, o funcionamento da máquina política do Partido ou da sociedade em si. Como já dissemos, o fio da meada é Winston Smith e a partir dele é que temos visões de como esse futuro distópico (com incômodas semelhanças em aspectos de nosso tempo) funciona.

Após a recusa do Estúdio em acatar a ideia do diretor Michael Radford e do fotógrafo Roger Deakins para filmarem 1984 em preto e branco, Deakins resolveu contornar o problema criando uma composição estética bem diferente do que se poderia esperar de uma película em 35mm sob o processo Eastmancolor. Embora tenha aumentado o orçamento, o diretor de fotografia fez uso da técnica Bleach Bypass no filme, uma espécie de lixiviação da película que a branqueia consideravelmente e a deixa com uma tintura prateada, mais ou menos como se sobrepuséssemos uma imagem preto e branco a uma colorida. Com menor saturação e maior contraste, o mundo que vemos no filme não perde suas cores originais mas tudo está fortemente mergulhado em uma hiper-realidade onde se destaca a miséria, os destroços, a ferrugem, a sujeira dos cômodos particulares e oficiais e os traços nos rostos dos personagens.

Com aplicações diferentes de luz e filtros na fotografia original, o processo Bleach Bypass pode apresentar momentos ainda mais intensos de desespero visual, como todas as cenas de tortura de Winston Smith ou o escurecimento progressivo das repartições de seu trabalho. Mas o oposto também é verdadeiro. As cenas do idílico ‘Golden Country’ e os encontros regados a sexo, comida e reflexão entre Winston e Julia apresentam maior intensidade de luz; no primeiro caso, com um pouco mais de felicidade (amarelo) e o no segundo caso, com um pouco mais de separação da escuridão local (branco).

O que deixa o filme menos interessante é justamente a grande atenção que o diretor dá ao escapismo de Winston. A recorrência do ‘Golden Country’ e as invasões de memórias do passado (não todas) muitas vezes estão à margem do que era necessário naquele ponto da narrativa. Se essas incursões funcionam bem em algumas cenas, em outras, são tropeços desnecessários na história, especialmente de meados do filme para o final.

A forma como o diretor conclui a obra ultrapassa a barreira da ideologia ou da crítica social e mergulha muita mais nas motivações do indivíduo, em sua força de vontade, em suas crenças, seu saber, seus preceitos morais e éticos. Um mundo onde todos se vestem de forma padrão (destaque aqui para os simples, mas ótimos figurinos de Emma Porteous), onde a memória do passado é controlada e onde todos são condicionados a pensar a mesma coisa através de um processo midiático onipresente e controlado pelo Partido pode, de fato, atingir o íntimo de todos? É possível resistir a essa situação?

Mesmo tantos anos depois e a despeito de seus tropeços de roteiro, 1984 continua sendo uma adaptação tocante, inteligente e esteticamente aplaudível. O filme também é lembrado por ter sido o último de Richard Burton, que morreu dois meses antes da estreia e à memória de quem o filme é dedicado; e por ter tido algumas de suas cenas-chave filmadas em 4 de abril de 1984, o dia em que vemos Winston Smith iniciar seus registros no diário. Observados o tempo inteiro, saturados por notícias fabricadas para atender aos interesses de uma instituição e progressivamente afastado de seus prazeres… É triste e chocante ao mesmo tempo constatarmos que traços dessa sátira de George Orwell deixaram de ser ficção há bastante tempo.

Mil Novecentos e Oitenta Quatro (Nineteen Eighty-Four) – Reino Unido, 1984
Direção:
Michael Radford
Roteiro: Michael Radford (baseado no livro homônimo de George Orwell)
Elenco: John Hurt, Richard Burton, Suzanna Hamilton, Cyril Cusack, Gregor Fisher, James Walker, Andrew Wilde, David Trevena, David Cann
Duração: 113 min.

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