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Crítica | Mil Cortes

por Davi Lima
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mil cortes

Dentro do campo político no século XXI, os discursos de ódio são sistematizados na aparência da aleatoriedade de comentários na internet. Nesse documentário Mil Cortes, o uso constante na tela de imagens flutuantes de tweets, em suas hashtags e arrobas concentrando repetição de termos odiosos, não permanecem expansivos em suas setas direcionadas, pois são, na verdade, precisos para um alvo específico pessoal. Embora a democracia como regime político incite a liberdade de expressão e consequentemente instigue efeito extensamente social, tanto na consolidação quanto na sua queda democrática, a diretora Ramona S. Diaz, no lema da defesa como melhor ataque, evidencia a protagonista Maria Ressa, jornalista independente do site Rappler, como reflexo da pessoalidade defensiva em prol da democracia contra o regime autoritário nas Filipinas. 

No que tange ao trabalho documentarista, semelhante ao método jornalístico de argumentação em cima de um recorte temático, em vez de a diretora buscar uma representação geral do contexto político da presidência repressiva de Rodrigo Duterte nas Filipinas, ela se apropria da circulação narrativa do site Rappler como fonte democrática, o chamado quarto poder como sustentação dramática. Por isso, o filme começa passeando a fotografia pelo escritório do Rappler com Maria Ressa ditando duas matérias que vão partir o filme em dois blocos temáticos: a guerra às drogas do governo de Duterte e como o presidente sai ou não do seu palácio, o chamado Palácio do Governador nas Filipinas.

Essa divisão é o trunfo que a diretora encontra para sistematizar seu trabalho de entrevistas e de registro, como entrevistando dois jornalistas – um que acompanha o trabalho da polícia e uma outra que conta o que vê nas partes mais pobres da cidade sofrendo da polícia – e acompanhando três candidatos das eleições ao senado que colocam em jogo o poder de Duterte no palácio. Ao mesmo tempo, essa divisão temática incita algo que vai se tornando cada vez mais disperso. Quando o documentário se revela muito mais direto em desenvolver o drama jornalístico de Maria Ressa, essa mesma divisão surge para o espectador querer saber mais sobre esse contexto que foi apresentado no início e permanecer nisso, ou tentar encontrá-lo na pessoa da jornalista.

Não se pode dizer que há alguma defraudação com quem assiste ao filme Mil Cortes, em vista que o grande conflito dramático, também nas primeiras cenas, é a prisão de Ressa, e como a câmera não consegue encontrá-la. Há um efeito de suspense, há até a quebra de imagem com aquele formato de vídeo de celular em pé, centralizando isso enquanto apresenta os créditos iniciais. E é nisso que consta a pessoalidade com que o filme trata para abordar a crise democrática no país. Ao longo da obra é perceptível que a diretora anseia mais por acompanhar Ressa em seus eventos pelos EUA e pela Europa, pois de fato ela parece acomodar os desejos democráticos de liberdade de imprensa, além de contrariar diretamente o discurso misógino e violento do presidente Duterte. Ressa é uma mulher e uma líder jornalística que inspira a liberdade de expressão, tão relevante na democracia, criando a pessoa documentada perfeita para discutir o problema político filipino. Constantemente Maria Ressa é representada como alguém indignada, mas que mantém a calma diante do caos democrático no país e dos ataques odiosos a ela. 

Em geral, a diretora Ramona S. Diaz parece entregar o clássico faro documentarista de seguir a intuição sobre o trabalho realista do documentário, no qual a história acaba surgindo em meio à pesquisa. Entretanto, mesmo que esse desenvolvimento de como esses tratos políticos têm um caráter pessoal, quando os regimes políticos abrangem muito mais pessoas do que só Ressa, que é atacada no Twitter, ou Duterte, que sempre discursa com um “eu” bem enfatizado, em que a diretora ao menos duas vezes parece colocar a entrevista de Ressa com Duterte como uma batalha de gigantes do bem contra o mal; a tal ideia dos Mil Cortes, metáfora que Ressa usa para representar a morte da democracia, perde voz na própria pessoalidade, na individualidade que o filme recorta. A sensação é de que o posicionamento do documentário Mil Cortes é mais uma defesa em prol de Ressa do que de fato desenvolver esse esfacelamento democrático que agride sociedades além das Filipinas.

É compreensível, mais uma vez, que Ressa seja o centro do discurso, pois ela vive o mal da ditadura filipina de maneira intensa, sendo presa várias vezes ao chegar no território de seu país, mas confronta como um discurso vivo a favor da democracia, contra Duterte. Ela explica o desenrolar das fake news, explica metodicamente o discurso de ódio nas redes sociais que durante todo o filme o jornal Rappler é atacado pelo jornalismo independente que atua. Tudo gira em torno de Ressa, afinal de contas, até mesmo as partes didáticas do documentário, que usa decalques na tela para detalhar algum evento registrado, são matérias da Rappler, manchetes do jornal. Mas a diretora foca nisso, em sobreposição ao redor que ela cria desde o início que investe na análise política por olhares mais diversos, como da jornalista Pia Ranada, que tem voz altiva como inspirada por Ressa e seu drama pessoal de ser humilhada também na internet e pelo presidente Duterte em uma entrevista, ou de como mesmo a artista Mocha Uson, que se integra no partidarismo cego em prol de Duterte, é vítima do machismo forte do regime filipino.

Por isso, o documentário Mil Cortes, apesar de ser muito vivo como denúncia contra as nuances “sashimimescas” de um regime político opressor que vai cortando em pedacinhos o peixe fresco da democracia, trata com individualidade algo muito amplo, tanto para as Filipinas quanto para outros países que passam por períodos tensos em suas democracias. Não é uma obra contraditória, mas ela parece acreditar muito que o aspergir temático em busca do foco dramático em uma jornalista tão relevante para a democracia filipina seja tão funcional e efetivo quanto a inocência potente de que uma metáfora tem de atingir o imaginário tão abrangente. Ressa inspira o espectador a acreditar na democracia, mas sua sustentação com certeza vai além disso, além do discurso. E a diretora se satisfaz em sugerir isso, apenas sugestões. 

Mil Cortes (A Thousand Cuts) – Filipinas, 2020
Direção: Ramona S. Diaz
Roteiro: Ramona S. Diaz
Elenco: Maria Ressa, Rodrigo R. Duterte, Amal Clooney, George Clooney, Patricia Evangelista, Ronaldo ‘Bato’ Dela Rosa, Samira Gutoc, Pia Ranada, Rambo Talabong, Mocha Uson
Duração: 98 minutos

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