Home FilmesCríticas Crítica | Mickey 17 (2025)

Crítica | Mickey 17 (2025)

Chatice interminável.

por Luiz Santiago
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Em seu primeiro filme após o icônico e oscarizado Parasita (2019), Bong Joon-ho aceitou trazer para as telas o romance sci-fi Mickey7 (2022), de Edward Ashton, partindo de uma premissa que dialoga com política, exploração e existencialismo, mostrando a condição humana por meio de um operário descartável em uma expedição destinada a colonizar um planeta gelado. A própria noção de identidade se fragmenta a cada clone de Mickey Barnes, que após um evento inesperado com a sua décima sétima versão, muda a dinâmica de funcionamento da colônia, numa série de situações que tentam despertar o espectador do sono, mas só conseguem reforçar o quanto texto e direção, em Mickey 17, não fluem bem, dispersam-se rápido demais e forçam uma comédia sociológica que, ao cabo, parece uma zombaria afetada ao próprio estilo de Bong Joon-ho. 

A performance de Robert Pattinson, que incorpora as diversas versões de Mickey (embora só vejamos o desenvolvimento dos corpos 17 e 18), é basicamente a única constante muito boa em toda a fita, moldada por uma interessante experimentação da direção e pela versatilidade dramatúrgica do próprio Pattinson, que muita gente, até hoje, insiste em negar. O diretor escondeu alguns detalhes das filmagens para o ator, a fim de reforçar a sensação de confusão mental do personagem, e isso fez com que cada versão, mesmo com suas grandes diferenças, tivessem estampadas a mesma dúvida em relação à sua própria natureza, apresentando, por experiências diferentes, um grande medo da morte. Cada clone, a seu modo, fez com que as pessoas a redor tivessem reações diferentes, tornando os Mickeys responsáveis por alavancar o enredo para caminhos de ação, desconfiança, suspense e perigo.  

A pior concepção, aqui, é a figura do líder da missão, Kenneth Marshall, interpretado por Mark Ruffalo — numa atuação que, pensando na intenção do personagem, não é ruim; mas essa mesma constituição chega a ser tão artificial e tão constrangedora quanto as más representações políticas de um SNL da vida. Marshall é o alvo comportamental da crítica político-administrativa da fita, e para sua exposição, o diretor recorre a repetitivas caricaturas (da maquiagem à captura dos gestos), imitando de forma ostensivamente barata alguns ícones da política contemporânea (especialmente Donald Trump). Dessa maneira, o cineasta sobrecarrega a obra com elementos propagandísticos autoindulgentes e simplórios, que apagam sua intenção de fazer refletir sobre um processo colonizador de uma terra desconhecida já habitada, e sobre as mais plurais dinâmicas do poder, com destaque para a tecnocracia. Em vez disso, Bong Joon Ho optou por repassar clichês (às vezes cômicos, às vezes trágicos) que, longe de trazer profundidade, empobrecem o debate sobre o autoritarismo, o fanatismo religioso emaranhado a uma lógica de controle, e os múltiplos mecanismos de manipulação social.

É claro que qualquer espectador atento vai entender o jogo exploratório do trabalho através da clonagem, onde Mickey (um cidadão que assina um contrato sem ter lido) é concebido não como um ser com potencial transformador, mas como uma força destinada unicamente a promover o progresso de uma colônia… entregando a própria vida. Uma colônia que, nas palavras do próprio criador, deverá ser branca e poderosa, portanto, pura e invencível. Embora pareça abrir espaço para um olhar afiado sobre o capital colonizador e as hierarquias raciais, todo o jogo dramático passa a ser conduzido de forma tão superficial que a crítica sociológica e antropológica se dissipa, comprometendo qualquer tentativa de oferecer uma reflexão robusta sobre a condição humana em face da exploração sistemática. Em dado momento, eu cheguei a pensar que mesmo uma comédia tão escrachada como Idiocracia (2006) teve sucesso em construir uma crítica coerente ao longo do desenvolvimento do roteiro, enquanto uma produção aparentemente mais escrupulosa e elegante, como Mickey 17, praticamente nem consegue atingir a camada do entretenimento. 

Me parece impossível não se sentir diante de uma imitação mal executada de Okja (2017), posta num roteiro que adota elementos de desastre, organização revolucionária e colonização que deveriam alfinetar o poder de transformação destrutiva e parasitária do sistema vigente, mas que se vê arrastada por um ritmo descompassado entre flashbacks, sonhos, embates mal delineados entre personagens e indivíduos que são a própria encarnação da inutilidade dentro de um filme (eu amo Toni Collette, mas seu papel aqui… simplesmente não dá). Além disso, é preciso chamar a atenção para como uma relação íntima que começa muito bem, entre Mickey e Nasha (Naomi Ackie), é largada de mão e, depois, vira um triângulo amoroso que se perde num pastiche raso, diluído no salvamento de um dos animais nativos e em diálogos sobre defesa de direitos, o que gera um sentimento de desarticulação que acompanha o filme até a sua derradeira cena.

Mickey 17 tenta condensar uma ampla realidade social numa ficção que deveria, em teoria, divertir e suscitar reflexões profundas. Contudo, ao se deparar com uma estrutura desprovida de cadência e coesão, termina numa construção estética e ideológica fragmentada, repleta de contradições e insuficiências, onde praticamente só o elenco, os figurinos e o desenho de produção para os bichos do novo planeta se destacam. O filme propõe uma análise do pioneirismo humano num recorte de seus piores e mais complexos momentos, mas, ironicamente, acaba por se tornar o retrato de uma realidade mal explorada, numa crítica que falha em se desdobrar em múltiplas dimensões. Nem mesmo como diversão pura, a obra funciona totalmente, o que, em última análise, é o verdadeiro sinal de que a coisa toda degringolou em sua ambição de querer tirar sarro, jogando coisas demais na cara do público e se esquecendo de contar algo com um sólido começo, meio e fim. 

Mickey 17 (Coreia do Sul, EUA, 2025)
Direção: Bong Joon Ho
Roteiro: Bong Joon Ho (baseado em romance de Edward Ashton)
Elenco: Robert Pattinson, Steven Yeun, Michael Monroe, Patsy Ferran, Cameron Britton, Christian Patterson, Lloyd Hutchinson, Samuel Blenkin, Ian Hanmore, Sabet Choudhury, Tim Key, Rose Shalloo, Bronwyn James, Holliday Grainger, Milo James, Naomi Ackie, Daniel Henshall, Mark Ruffalo, Toni Collette
Duração: 137 min.

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