Pejorativamente, o cinema já foi tratado como um “teatro filmado“. Durante os primeiros anos após à primeira exibição cinematográfica, a encenação cinematográfica, segundo Georges Sadoul, era basicamente teatral: sem variações de ângulos de câmera e uma altura de enquadramento a nível de olho, simulando a visão de um espectador teatral. A aparente simplicidade das produções de filmes do início do século XX se dão, também, pelo caráter de mera atração que o cinema possuía em seus primórdios, sendo considerado nada mais que uma mera distração de vaudevilles.
Tanto isso é comprovado que, até meados dos anos 1970, essa primeira fase da história cinematográfica era chamada de cinema de atrações. Foi apenas com os estudos de Comolli sobre críticas a entendimentos lineares da história, que congressos cinematográficos passam compreender o fenômeno do primeiro cinema como uma espécie de experimentalismos do novo veículo. Os estudos cinematográficos da década de 1970 provaram que o primeiro cinema representa uma vertente de pensamento cinematográfico, assim como, posteriormente, o Expressionismo Alemão e a montagem soviética.
Utilizar a nomenclatura “teatro filmado” de maneira degradante, referindo-se à simplicidade estética de uma obra é, dessa maneira, uma proposição contestável. O trânsito de ideias entre teatro e cinema não se limita a um termo. As heranças teatrais estão presentes tanto na indústria quanto nos aspectos de encenação. Lee Strasberg, por exemplo, inspirado por Stanislavski, desenvolve um método de atuação que consagrou atores como Marlon Brando; por outro lado, Jean-Luc Godard se apropria de idéias de Bertolt Brecht para construir sua mise en scène.
Carl Theodor Dreyer é um dos realizadores que mais bebe da fonte da arte teatral. Desde o princípio de sua filmografia, o diretor busca por adaptar peças teatrais de autores escandinavos. Dois de seus principais filmes, A Palavra (1955) e Dias de Ira (1943), apresentam um claro método de Dreyer em filmar textos. Trazendo como principais temáticas a fé, a vida e a morte, o diretor dinamarquês é conhecido por sua sutil encenação e a potência filosófica de suas obras. Também podem ser observadas claras referências de práticas de atuação oriundos do teatro.
Michael (1924) é um dos primeiros longas mais conceituados do diretor dinamarquês, que se consagrou com O Martírio de Joana D’Arc, em 1928. O filme aqui em questão versa sobre a relação entre o jovem Michael e o pintor Claude Zoret (interpretado pelo também diretor Benjamin Christensen). A parceria dos dois é profissional, com Michael servindo de modelo para o artista, e também pessoal: Zoret possui uma efervescente paixão pelo rapaz, que parece estar se distanciando do pintor.
Com um usual tom intimista dos filmes de Dreyer, o universo de Michael é construído através de pouca invasão do dispositivo cinematográfico na narrativa; ou seja, conservam-se longos planos capazes de cobrir a ação da cena como um todo – tendo na montagem um artifício pontual que, durante boa parte do filme, apenas interfere em momentos específicos. Dessa maneira, o trabalho físico dos atores fica evidente e torna-se ferramenta expressiva da narrativa do filme. Ainda, o posicionamento frontal dos atores perante a câmera constitui mais uma influência do teatro na película. Detalhe importante é a questão da ausência de som e trilha musical: assistir Michael sem qualquer referência sonora é fundamental para uma experiência completa da obra de Dreyer.
A temática do filme por si só representa uma subversão de valores cristãos tão adorados pelo diretor. Se até os dias atuais a homossexualidade representa um tabu para um parcela da sociedade, há quase 100 anos, relações homoafetivas eram inconcebíveis. O caráter de desconstrução não para por aí: nos momentos em que a montagem se faz presente, regras clássicas estabelecidas por D.W. Griffith são ignoradas, vide o eixo de olhar — questiono-me, no entanto, se o uso de uma montagem que seguisse clássica não seria mais adequada para construção da sutileza da mise en scène.
Um dos fatores que mais chama atenção em Michael é o uso dos close shots em momentos de encontro entre o protagonista e Zoret. Durante a primeira metade do filme, a montagem atua pouco, mas quando é utilizada, é com maestria. Os momentos pessoais entre os personagens, de caráter quase lírico, com os clássicos tons acinzentados de Dreyer e um destaque à luz branca, são construídos por closes. Aqui, temos planos fechados e referências corporais que desenvolvem um ambiente de tensão sexual entre os dois. Os poucos close shots também apresentam Zoret como uma figura de maior poder, acentuando seu rosto com uma iluminação que flerta com o expressionismo – outra tendência da filmografia de Dreyer. O valor do gesto por meio da direção minuciosa, dão ao corpo um importante papel no filme. Luchino Visconti, em Morte em Veneza, é outro diretor capaz de desenrolar um encontro de maneira tão bela e, ao mesmo tempo, sutil.
Por mais que Stanislavski tenha proposto sua principal teoria a respeito de seu sistema de atuação anos depois do lançamento de Michael, vê-se, no filme, algo similar àquilo que expunha o teatrólogo russo em seus estudos. Pregando uma inspiração do ator na vida real, Stanislavski representa um ramo do naturalismo, no qual o físico deve dizer mais sobre o interior dos personagens do que as próprias palavras; aliar, dessa maneira, o físico ao mental é base para o Método. Dreyer consegue realizar algo similar no filme em questão. O papel físico dos atores, valorizado pelo estilo de direção, diz muito mais sobre seu estado mental do que os próprios cards de falas do filme. Zoret, ao se ver abandonado por Michael, perde sua aura dominadora e ganha contornos deprimentes, com um olhar opaco e um caminhar lento e cabisbaixo.
É interessante pensar que o desenvolvimento do filme através da construção do trabalho físico funciona quase como um culto ao corpo. Michael e Zoret, unidos por uma paixão ardente, mas colocada nas entrelinhas através dos close shots, com um olhar, um gesto, representada na fisicalidade dos atores. O toque, a sutileza dos movimentos e das interações corporais entre os dois, apontam para um relação física, carnal, que se apresenta no plano da vida comum. Há, portanto, uma aparente materialidade na paixão dos protagonistas.
Contudo, as cenas finais do filme de Dreyer apontam para um transcendência da conexão de Michael e Zoret. Em seu leito de morte, o pintor, já separado de seu modelo, está imerso nas sombras — literalmente, aqui há uma forte referência ao chiaroscuro expressionista. Contudo, Zoret acaba tendo uma visão de Michael, deitado em sua cama ao lado de sua esposa. Ele está em sofrimento. Há uma justaposição entre os planos do artista e do rapaz. Os olhares dos dois se conectam. E volta a atmosfera lírica dos primeiros encontros entre os dois; os brancos se destacam, formando uma aura angelical, dando uma ideia de plenitude. Os dois sorriem, com os olhares conectados por raccords. Zoret afirma que pode morrer em paz. Esse rápido porém profundo trecho do filme indica que a união dos dois é muito além de puro amor mundano. Os protagonistas estão junto até na morte. Dreyer, aqui, aplica a questão do misticismo e da morte de maneira a funcionar como um estudo daquilo que viria a propor em A Palavra na gloriosa cena da ressurreição.
Michael, no entanto, é um filme que oscila durante sua segunda metade. A estética aqui chamada de teatral some e dá lugar a uma invasão do veículo cinematográfico, algo que quebra com o encanto da encenação do início da película. Os close shots, antes meticulosos e com um precisão formal ímpar, são banalizados e transformam-se em mero instrumento de linguagem, perdendo sua potência. Com o filme mais decupado, perde-se a ideia da materialidade da relação de Michael e Zoret, já que o foco, agora, sai das ações físicas dos personagens.
O filme de Carl Theodor Dreyer é um bom estudo de técnicas que viriam a ser utilizados Bresson e Bergman durante os cinemas modernos. Contudo, sua queda de qualidade durante um grande trecho da obra enfraquece as possíveis relações entre a encenação e o relacionamento dos protagonistas. A ideia que fica é que o amor de Zoet e Michael é algo a mais. Se Nietzsche postula que o que é feito por amor está além do bem e do mal, Dreyer entende que o amor é maior que a vida e a morte.
Michael (Mikaël) – Alemanha, 1924
Direção: Carl Theodor Dreyer
Roteiro: Carl Theodor Dreyer e Thea von Harbou
Elenco: Benjamin Christensen, Walter Slezak, Max Auzinger, Robert Garrison, Nora Gregor
Duração: 93 min.