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Crítica | Meus Heróis Eram Todos Viciados

O fio da navalha entre romantização e crítica.

por Ritter Fan
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A graphic novel Meus Heróis Eram Todos Viciados, decididamente escrito e focado em adultos, mas que leitores mais jovens – mas não tão mais jovens – poderão apreciar em todas as suas camadas se tiverem o nível correto de maturidade, é uma daquelas obras da Nona Arte que provam que os quadrinhos mainstream de super-heróis devem mesmo ser apenas as portas de entrada no mundo da arte sequencial, cujo potencial somente chega a aflorar de verdade quando o leitor gradua para obras de abordagem mais série, escritas para lidar direta e duramente com a realidade, mesmo que recorrendo a elementos sobrenaturais e outros. Uma coisa não elimina a outra, vejam bem, mas ler mais essa parceria de Ed Brubaker com Sean Phillips no universo de Criminal, que eles criaram em 2006 e publicaram originalmente pelo selo Icon, da Marvel Comics, é um deleite tão grande que meu primeiro pensamento ao terminar a segunda passada foi justamente sobre o quanto esse meio permite exploração e reflexão se o leitor simplesmente sair um pouquinho do caminho mais óbvio.

Já há bastante tempo saindo pela Image Comics, a parceria do escritor e do desenhista em Criminal ganha, então, esse razoavelmente curto one-shot batizado de “uma novela de Criminal” pelos autores que pode ser lido de maneira completamente independente das demais obras, servindo até mesmo de porta de entrada para elas. E que porta de entrada! Na história, Ellie é uma jovem viciada em drogas que é internada em uma luxuosa clínica de tratamento e acaba conhecendo o também jovem Skip, com quem acaba nutrindo amizade e, claro, mais do que apenas isso. Mas Ellie, que também é a narradora – e não confiável para emprestar uma pegada noir à obra -, é mais do que apenas isso, muito mais. Sua vida sempre foi cercada de drogas, começando com sua mãe, viciada em heroína, e seu pai, na prisão, passando por sua própria visão desse mundo de vícios, uma visão que o enxerga como a vida como ela é e não algo fora do esquadro, algo que necessariamente precisa ser combatido.

Em outras palavras, Ellie romantiza o vício em drogas e seu raciocínio passa por seus maiores ídolos, normalmente músicos, terem tido as maiores epifanias de suas respectivas vidas em razão das drogas. Como o título deixa bem claro, os heróis de Ellie foram ou são viciados e, como acontece com todos os nossos heróis, ela os venera e, lógico, venera seus hábitos. Sem dúvida uma abordagem pesada, autodestrutiva, niilista, que Ed Brubaker cultiva com cuidado, construindo uma personagem que, apesar de ser apenas quase uma adulta, tem plena consciência do que quer ou, talvez melhor dizendo, do que acha que quer com base em sua bem particular visão de mundo, que a leva a concluir que ela é uma má influência, claramente já indicando ao leitor que seu relacionamento com Skip não terá um final de conto de fadas, até porque nada é realmente o que parece ser, ainda que a esperada reviravolta não seja tão importante quanto o desenvolvimento da protagonista.

Creio, porém, ser importante deixar muito claro que, apesar de Ellie romantizar as drogas e o vício em drogas e tudo ser visto por seus olhos e consubstanciado por seu conhecimento enciclopédico sobre seus ídolos, com sua vida pregressa ganhando belos flashbacks em preto e branco, esta não é a mensagem de Brubaker. Na verdade, não é toda a mensagem. Sim, Brubaker critica a forma como a sociedade enxerga os viciados em drogas, normalmente vilanizando-os e os transformando em pária de um sistema já podre pelas mais diversas razões. E sim, Brubaker olha com um olhar “de pai” para sua Ellie, fazendo todo o esforço do mundo para aproximá-la do leitor de maneira que criemos empatia por ela, algo em que, pelo menos para mim, ele é muito bem-sucedido.

No entanto, o coração de Meus Heróis Eram Todos Viciados parece-me ser nossa tendência de construirmos o nosso próprio mundo para justificar aquilo que queremos justificar. A complexidade de sua protagonista que talvez seja um tanto quanto mais madura do que sua idade permite mesmo considerando seu passado – mas isso faz parte – é fascinante e o autor manobra o leitor primeiro de forma a fazê-lo enxergar o que Ellie enxerga, mas, ao mesmo tempo e gradativamente, deixando evidente que seu mundo é erigido em cima de conveniências de uma mente influenciada pelo que viu e experimentou em tenra idade, quase como se ela tivesse sido programada para ser quem ela é. Ellie precisa de seus heróis e, conhecendo a história deles, ela precisa que sua vida ganhe relevo a partir daquilo que eles viveram, como se fossem tapinhas nas costas dela dizendo algo como “sim, querida, você está certíssima, continue assim”. Afinal de contas, não é isso que basicamente ansiamos todos os dias? Queremos aprovação, queremos que nossos atos sejam vistos com positividade, mesmo na rebeldia. Ellie sabe que seus ídolos eram e são viciados e que o vício é parte importante de suas vidas, exatamente como acontece com ela, pelo que, então, tudo está certo.

A característica arte de Sean Phillips vem para materializar Ellie e esse seu mundo muito particular. O artista usa traços mais finos, mais leves e menos poluídos para trabalhar a personagem e toda a ambientação realista primeiro na clínica e, depois, nos mais diversos lugares quando a protagonista e Skip saem de lá para uma road trip não sancionada. Apesar do tema espinhoso, as escolhas estilísticas e visuais da graphic novel refletem a visão de mundo que Ellie tem e que ela constrói para fazer de seus heróis sua razão de ser e, com isso, deixando claro ao leitor que Ellie tem sua narrativa florida e bonita como os quadros que Phillips desenha e que seu filho Jacob colore magistralmente com tons terrosos e pasteis, fazendo o pincel sangrar para fora das linhas do pai, discretamente nos dizendo que as linhas entre a realidade e a ficção de Ellie convivem constantemente.

Sem ação, mas com muita reflexão, Meus Heróis Eram Todos Viciados é uma delicada, mas também devastadora jornada pela vida de uma jovem sem rumo que precisa que seu vício em vícios, por assim dizer, sejam alentos coloridos para o mundo sombrio em que habita. Mais uma vez, Ed Brubaker e Sean Phillips entregam uma obra que elevam a mídia em que trabalham e que deixa evidente todo o seu infinito potencial se tivermos a coragem de sair daquele espaço confortável a que costumamos nos limitar.

Meus Heróis Eram Todos Viciados (My Heroes Have Always Been Junkies – EUA, 2018)
Roteiro: Ed Brubaker
Arte: Sean Phillips
Cores: Jacob Phillips
Editora original: Image Comics
Data original de publicação: outubro de 2018
Editora no Brasil: Mino
Data de publicação no Brasil: dezembro de 2021
Páginas: 72

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