Sempre tive problemas com biografias, especialmente na subcategoria de autobiografias, mas, desde o final de 2021, quando resolvi encarar o livro de memórias de Mel Brooks, venho tentando lidar com esse meu preconceito, focando em obras de pessoas do show business escritas já em final de carreira. Desde então, li as autobiografias de Brian Cox, Robert Evans, Bob Odenkirk (a exceção à regra do “final de carreira” e, talvez não coincidentemente, a mais fraca de todas), Michael K. Williams, David Milch, Patrick Stewart e Werner Herzog. Quando soube que a octogenária Barbra Streisand finalmente lançaria a dela que ela vinha prometendo há décadas, fiquei na expectativa não por ser exatamente fã desse ícone cultural americano – eu não escolho as autobiografias por ser ou não fã de quem escreve, mas sim por meu interesse geral na pessoa e em sua importância em seu meio -, mas fiquei na dúvida se encararia o desafio já que, ao que tudo indicava, o livro teria mais de mil páginas, basicamente o dobro do tamanho da autobiografia mais avantajada dessa minha estirada recente.
Com oito páginas menos do que o número redondo de quatro dígitos, Meu Nome é Barbra é um calhamaço gigantesco que, apesar de eu ter decidido ler, deu-me preguiça imediatamente, além de um alívio por eu ter escolhido ler no Kindle, pois manejar o livro físico não seria nada fácil. Mas essa preguiça não demorou a se dissipar na medida em que eu adentrava na história da vida de uma das artistas mais prolíficas e completas dos EUA, com uma carreira invejável como cantora, compositora, atriz, diretora, roteirista e produtora, mas não somente por passar a conhecer os detalhes da vida dela por sua própria voz, mas sim por reconhecer algo raro em obras desse gênero: uma genuína, irrestrita e generosa vontade de desnudar-se completamente diante do mundo, de entregar todo e qualquer tipo de informação sobre si mesma, seja para agradar seus fãs inveterados, seja para a autobiografia funcionar como uma extensa sessão de terapia, de catarse pessoal mesmo.
Sim, Meu Nome é Barbra beneficiar-se-ia de um trabalho cuidadoso e amplo de edição para reduzir seu tamanho, retirar as inúmeras repetições provavelmente causadas pelo tempo em que ela levou escrevendo a obra e para melhorar a fluidez e a concatenação de raciocínio, mas é perceptível que as mil páginas estão lá porque Streisand simplesmente não queria deixar nada de fora, queria conversar com os leitores, queria oferecer um acesso à sua vida privada que, pode até não ser sem precedentes, mas é sem dúvida raro, especialmente quando ela mesmo afirma por diversas vezes que, ainda que seja uma figura pública, ela preza profundamente por sua intimidade, desgostando inclusive de cantar ao vivo, o que é uma contradição em termos se levarmos em conta sua carreira, lógico, mas que, também, é o que ela sente e, pelo que ela diz, sempre sentiu desde que subiu no minúsculo palco da boate gay Lion, em Greenwich Village, Nova York, em 1960.
Apesar dos problemas que o tamanho e o tempo que ela levou para escrever trouxeram à obra, fiquei impressionado pela vontade de Streisand de lidar minuciosamente com boa parte do conjunto de sua obra, de produções de álbuns a seus filmes, passando por seu trabalho de filantropia e, claro, sua forte posição política, tudo erigido por sobre uma pegada clara e conscientemente feminista que faz muito bem à narrativa como um todo, pois ela foge de pregações e sim apenas relata o que ela enfrentou ao longo de sua longa carreira, com homens querendo ditar o que ela deveria fazer ou duvidando de sua capacidade de sair de sua zona de conforto, como foi o caso do diretor teatral Arthur Laurents recusando-se a aceitar uma ideia sua na montagem de I Can Get It to You Wholesale, ou a tortura psicológica a que sua co-estrela Sydney Chaplin (sim, filho do grande Charles Chaplin) a impingiu na montagem de Funny Girl, mas sem demonizá-los por completo, pois, quando ela decide elogiar, como acontece com William Wyler, que a dirigiu na icônica adaptação cinematográfica Funny Girl: Uma Garota Genial, ela não economiza palavras. Aliás, sendo bem sincero, se tem uma coisa que Streisand não faz em sua autobiografia é economizar palavras…
O que quero dizer é que, quando Streisand aborda um assunto, como por exemplo Yentl, sua estreia na direção, ela vai na minúcia, começando com o quanto foi difícil fazer esse projeto decolar com ela no timão, além de no papel principal, no roteiro e na produção e o quanto ela teve que enfrentar profissionais que trabalharam ao seu lado tentando o tempo todo sabotá-la, seja não fazendo o que ela queria, seja deliberadamente distorcendo suas instruções, além de seu trabalho em locação na Europa, na pós-produção e assim por diante. E isso ela repete em praticamente todos os filmes mais importantes de sua carreira, mantendo o frescor e o interesse por esse tipo de narrativa que é ao mesmo tempo profundamente pessoal – ela por diversas vezes estabelece correlações com sua vida privada, especialmente com sua mãe, seu pai e seu padrasto – e muito interessante para quem gostar de detalhes dos bastidores de produções cinematográficas.
Falando em sua família, esse é um tema onipresente na autobiografia. Ela aborda o distanciamento e frieza de sua mãe Diana Ida em relação a ela e a tudo o que ela conquistou, mas compreendendo e ao mesmo tempo lamentando as dificuldades que levaram sua progenitora a agir assim. Por outro lado, ela condena veementemente o comportamento abusivo de seu padrasto e idolatra o pai Emmanuel Streisand que ela nunca realmente conheceu em razão de seu falecimento no ano seguinte de seu nascimento e cuja história ela descobriu não através da mãe, mas garimpando informações ao longo da vida. Essa conexão tripartite familiar é algo marcante para Streisand e sua autobiografia nunca perde de vista especialmente sua mãe e pai, de uma forma ou de outra, seja comparando sua mãe biológica com as demais figuras maternas que ela teve na vida, notadamente Virginia Clinton, mãe de Bill Clinton, seja homenageando o pai com a dedicação de um prédio em seu nome na Universidade Hebraica de Jerusalém.
Em termos estruturais, o livro usa a combinação de dois artifícios narrativos. O primeiro, mais do que comum em obras do gênero, é o de seguir a ordem cronológica padrão, o que ajuda tremendamente na localização temporal – e também muitas vezes espacial – da narrativa. O segundo, porém, é menos comum e “briga” com a abordagem cronológica, que é dedicar capítulos e grupos de capítulos a determinadas obras e situações, como por exemplo quando ela fala de seus filmes ou quando ela fala de sua amizade com Marlon Brando ou seus casamentos com Elliot Gould, com quem teve um filho, e com James Brolin (pai de Josh Brolin), que dura de 1998 até hoje em dia. O choque entre essas duas maneiras de contar sua história, porém, funciona para torná-la mais dinâmica, algo que qualquer livro desse tamanho precisa ser. Por outro lado, isso acaba facilitando repetições, algo que já mencionei como um dos problemas da obra, ainda que ela faça de tudo, especialmente usar linguagem coloquial do tipo “mas isso eu tratarei mais a frente”, para criar cumplicidade com o leitor.
Meu Nome é Barbra é, portanto, uma narrativa tecnicamente falha, mas cujos problemas são compensados pela dedicação de Streisand à sua história. Nada fica de fora, nada é explicado “mais ou menos” e nada é realmente irrelevante, inclusive sua constante explicação dos vestidos que mandava e ainda manda fazer para as mais diversas ocasiões, ou seu hobby de designer de interiores em em sua mansão em Malibu. Claro que, como basicamente toda autobiografia, há um quê de falsa modéstia, de indiretas sobre o quanto ela é genial e assim por diante, e Streisand não é particularmente hábil em “esconder” esses autoelogios (como, por exemplo, Patrick Stewart é, algo que ele faz debaixo de sua fleuma britânica), mas isso de maneira alguma – a não ser que o leitor desgoste de sua postura política, que é obviamente liberal de tendência de esquerda, mas nunca “comunista” como logo gostam de apontar – afeta o resultado final de uma obra em que Barbra Streisand derrama seu todo e entrega muito mais do que apenas um panorama de sua extensa carreira. Meu Nome é Barbra é Barbra Streisand completa, franca, sem freios e sem medo de cravar os pés no chão para finalmente colocar em pratos limpos toda sua invejável vida.
Obs: Interpretem como estratégia de marketing ou como a honesta vontade de Streisand de oferecer o máximo possível com seu livro, mas três versões da obra foram lançadas, uma em cada mídia. A primeira é a versão em livro impresso, a mais “comum”. A segunda é a versão em Kindle, que contém um álbum de fotografias exclusivo e a terceira é versão em áudio-livro em que não só é ela quem lê, como ela oferece comentários exclusivos e espontâneos em diversos momentos, além de haver clipes musicais costurados na narrativa para ilustrar trechos em que ela fala de determinada canção, show ou álbum. A versão em Kindle está muito boa e eu também acompanhei a versão em áudio-livro, intercalando com a leitura e, enquanto creio que a edição sonora final seja muito lenta, o que me forçou a acelerar a velocidade de escuta, a coloquialidade de Streisand, com risadas, inflexões de voz e tudo mais (é sensacional como ela fala o nome de Marlon Brando, ainda com aquela admiração de adolescente) e os clipes de música valem muito a pena.
Meu Nome é Barbra (My Name Is Barbra – EUA, 2023)
Autoria: Barbra Streisand
Editora: Viking Press
Data de lançamento: 07 de novembro de 2023
Páginas: 992