Mesmo sendo um ermitão que só faz uso de redes sociais quando estritamente necessário (ou seja, nunca), não pude deixar de notar uma espécie de burburinho estranho ao redor da tão alardeada nova série da franquia He-Man e os Mestres do Universo, desenvolvida por Kevin Smith e vendida como uma continuação da série clássica da Filmation que foi ao ar entre 1983 e 1985, não mais do que um veículo publicitário de brinquedos, e que ignoraria tanto a abominável suposta continuação de 1990, quanto o reboot de 2002. Todas as reclamações que acabei lendo tinham relação com He-Man supostamente passando a ser um coadjuvante em sua própria série e que a verdadeira protagonista seria Teela, filha adotiva de Mentor.
Pois bem, minha gente: essa é a mais pura verdade. O loiro bombado de tanguinha e franja, genérico de Conan, o Bárbaro, e que cavalga um tigre verde e laranja, realmente não é o personagem principal da série que, em seu lugar, coloca Teela (Sarah Michelle Gellar) capitaneando a aventura juntamente com mais duas mulheres, sua amiga Andra (Tiffany Smith) e a vilanesca feiticeira Maligna (Lena Headey, sensacional no papel). Um verdadeiro absurdo lacrador, não é mesmo? Como assim meu hominho fortinho perdeu espaço para meras mulheres??? O que Kevin Smith estava pensando, pelos poderes de Grayskull??? Minha infância foi completamente destruída com esse acinte inenarrável que reverberou tanto nas redes sociais que chegou até mesmo em minha caverna sem energia elétrica…
Só que não… Kevin Smith mandou foi MUITO bem ao desconstruir a fraquíssima série original feita nas coxas para vender bonequinhos (sim, aceitem que é fraca que já é um bom começo – e sim, eu a via quando criança quando ela passava na televisão, então ninguém pode dizer algo como “aff, essa nova geração” e outras bobagens semelhantes) logo no primeiro dos apenas cinco episódios de sua criação, de forma a poder erigir a sua própria Eternia. Mas o cineasta e produtor, para surpresa de absolutamente ninguém, tenho certeza, pois Smith é mais nerd que o mais nerd entre nós, fez esse trabalho respeitando a mitologia construída aos trancos e barrancos nos anos 80, arrumando-a de maneira lógica e bem estruturada e usando-a para justificar o protagonismo natural de Teela depois que, na batalha final entre He-Man (Chris Wood) e Esqueleto (Mark Hamill), a espada do poder é divida em duas e a magia de Eternia se esvai, levando a então recém-empossada Mentora a uma jornada, muitos anos depois, para salvar o planeta da destruição.
Smith usa com muito cuidado e inteligência cada personagem clássico que aparece com nova roupagem nesta estranha Eternia sem magia. Seja uma frustrada Teela lutando exatamente para não trilhar o caminho que o destino lhe reserva ou Maligna relutantemente ajudando na jornada, pela primeira vez livre da influência do Esqueleto ou mesmo na presença de Triclope (Henry Rollins) como o líder de uma seita tecnológica, Roboto (Justin Long) como uma versão mecânica do sofrido Mentor (Liam Cunningham) ou Gorpo (Griffin Newman), que foi profundamente afetado pelo fim da magia no planeta e se ressente de sua própria clássica incapacidade de ajudar os amigos. Até mesmo personagens menores na mitologia como Scare Glow (Tony Todd) e Homem Musgo (Alan Oppenheimer) ganham reposicionamentos interessantíssimos que os retiram do lugar-comum, com outros mais “figurinhas fáceis” como Aquático (Kevin Conroy) ganhando contornos mais complexos que carregam uma “história” não falada e não abordada que visualmente preenche a elipse temporal que separa o primeiro episódio dos quatro seguintes.
A história dessa primeira metade de temporada é a clássica jornada de autodescoberta disfarçada de busca de um MacGuffin, no caso as duas metades da Espada do Poder, uma em Subternia e outra em Preternia, que Teela precisa encarar. É por seu ponto-de-vista de basicamente a única pessoa que não sabia do segredo do Príncipe Adam (algo que sempre achei o suprassumo da injustiça na animação original) que tudo é visto e contado, com sua versão mais velha, experiente e encorpada tendo que realmente começar a olhar para si mesma como alguém com conexões profundas com o destino do planeta, algo que também vem do desenho oitentista e que Smith usa como gancho lógico para catapultar a personagem para a frente dos demais. É como uma mistura de A Sociedade do Anel (a reunião da equipe heterogênea, os conflitos) com elementos de Star Wars (a predestinação, a forma de se encarar o medo), mas sempre com raízes no universo específico que Kevin Smith procura honrar e, sejamos francos, melhorar substancialmente.
Para além da história, outro grande destaque é a direção de arte que dá um bem-vindo banho de loja na franquia, conseguindo ser inclusive superior à já boa abordagem visual da série de 2002. Diferente do ótimo reboot de She-Ra, também distribuído pelo Netflix, Smith elegeu modernizar os visuais clássicos, com o estúdio Powerhouse, responsável por Castlevania e Sangue de Zeus, recriando os personagens de maneira exemplar e, indo além, modificando-os após a elipse temporal de maneira lógica e muito bonita, também com o objetivo de vender novos brinquedos, claro. Mas, diferente da série original que tinha ótimas ideias, mas uma execução pobre em razão do orçamento e recursos da época, aqui vemos todo o esplendor desta Eternia quase sem magia, com cenários variados, boa movimentação de personagens e cores vibrantes, além da pomposa e bem sincronizada trilha sonora novinha em folha composta por ninguém menos do que Bear McCreary.
Mesmo com apenas cinco episódios, mas que fecham um arco narrativo bem definido, Mestres do Universo muito eficiente destrói as bases narrativas originais para reconstruir e expandir a mitologia e transformá-la em algo muito superior que finalmente dá um norte a essa franquia que, mesmo tendo nascido da forma “errada”, conquistou uma geração de pequenos consumidores de bonequi… , digo, figuras de ação. A força realmente está com Kevin Smith e sua Teela para desespero daqueles que queriam somente a mesma coisa novamente.
Mestres do Universo: Salvando Eternia – 1ª Temporada, Parte 1 (Masters of the Universe: Revelation, EUA – 23 de julho de 2021)
Desenvolvimento: Kevin Smith (baseado em obra de Lou Scheimer)
Direção: Adam Conarroe, Patrick Stannard
Roteiro: Kevin Smith, Diya Mishra, Marc Bernardin, Tim Sheridan, Eric Carrasco
Elenco: Sarah Michelle Gellar, Tiffany Smith, Lena Headey, Chris Wood, Mark Hamill, Liam Cunningham, Stephen Root, Griffin Newman, Susan Eisenberg, Kevin Michael Richardson, Kevin Conroy, Henry Rollins, Jason Mewes, Alan Oppenheimer, Justin Long, Tony Todd, Diedrich Bader, Alicia Silverstone, Phil LaMarr, Cree Summer, Harley Quinn Smith, Dennis Haysbert, Adam Gifford, Jay Tavare
Duração: 126 min. (cinco episódios)