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Crítica | Mestre dos Mares: O Lado Mais Distante do Mundo

Um mestre no comando.

por Ritter Fan
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Apesar de baseado em uma das mais admiradas séries literárias britânicas modernas, conhecida como Série Aubrey–Maturin ou, por aqui, simplesmente Série Mestre dos Mares, escrita por Patrick O’Brian, e de ter concorrido a 10 estatuetas do Oscar, inclusive Melhor Filme e Diretor (a quarta e última indicação de Peter Weir na categoria), tendo levado duas, uma de Direção de Fotografia e a outra de Edição de Som, em um ano em que O Retorno do Rei varreu a cerimônia, e de contar com Russel Crowe, que ainda surfava na glória de Gladiador e de Uma Mente Brilhante, no papel principal, Mestre dos Mares: O Lado Mais Distante do Mundo foi um dos filmes mais criminosamente ignorados pela audiência mundial quando de seu lançamento, angariando pouco mais de 210 milhões de dólares na bilheteria, um inafastável fracasso retumbante considerando seu orçamento de 150 milhões. Mas o penúltimo filme na carreira de seu diretor e de longe seu mais épico a ponto de ser, em escopo, até pouco característico dele, angariou, ao longo dos anos, um bom reconhecimento, a ponto de diversas campanhas terem surgido aqui e ali para que uma continuação fosse produzida.

Com um roteiro do próprio Weir ao lado de John Collee que bebeu de três romances da referida série literária, especialmente do 10º cujo título é o subtítulo do longa, o épico náutico se passa em 1805, durante as Guerras Napoleônicas, em que a fragata HMS Surprise, comandada pelo Capitão “Lucky” Jack Aubrey (Crowe), passa de perseguida pelo maior e mais moderno e poderoso navio de bandeira francesa construído nos EUA Acheron para perseguidora da Acheron em uma viagem que começa no Oceano Atlântico, na altura do nordeste do Brasil, e acaba no Oceano Pacífico, nas Ilhas Galápagos. Como deuteragonista, o filme conta com Stephen Maturin (Paul Bettany), cirurgião do navio e naturalista nas horas vagas que, aqui, funciona tanto quanto o melhor amigo do capitão, estabelecendo o conflito entre o cumprimento do dever custe o que custar e a humanidade, como uma versão de Charles Darwin que faria viagem semelhante no HMS Beagle a partir de 1831. E, entre os dois, há uma pletora de outros personagens que, de uma forma ou de outra, povoam e dão vida ao navio que é quase que exclusivamente o único lugar fixo em que a ação se passa, seja na forma da réplica do HMS Rose construída em 1970 como parte das comemorações do bicentenário dos EUA, seja na do cenário em tamanho real meticulosamente erigido pela equipe de produção e instalado em uma plataforma pivotante no mesmo gigantesco tanque de água do Baja Studios, no México, que fora especialmente construído para as filmagens de Titanic.

Apesar do escopo épico e apesar de todo o potencial para uma infinidade de batalhas marítimas, Mestre dos Mares não é, acertadamente, um filme que se apoia na ação para funcionar, reservando a pancadaria náutica para apenas dois momentos, um no começou, outro no final do longa, com toda a minutagem entre uma coisa e outra sendo dedicada à vida no mar, em um navio de guerra, com todas os reveses e conflitos que podemos esperar de uma obra assim, só que com um toque humanista sempre presente que Weir imprime constantemente na forma como trabalha tanto seus personagens principais quanto os diversos coadjuvantes, lidando com questões importantes como dever por um país, a dedicação às ciências naturais, as superstições, o bullying, traumas mentais e físico e, claro, a relação de amizade muito próxima entre Aubrey e Maturin que têm personalidades muito diferentes, mas que se complementam, com Crowe e Bettany, em sua segunda parceria seguida (a outra foi em Uma Mente Brilhante, dois anos antes). É bem verdade que os personagens coadjuvantes são mais representativos do que são – filhos de lordes, zelotes que espalham o pânico na tripulação e assim por diante – do que efetivos personagens, mesmo que alguns atores, como James D’Arcy e Billy Boyd (esse pode bater no peito e dizer que fez dois filmes lançados no mesmo ano que, juntos, concorreram a nada menos do que 21 Oscars!) sejam imediatamente reconhecíveis, pelo menos hoje em dia, mas isso não retira da obra sua maneira de transitar entre uma multitude de pessoas diferentes em um ecossistema fechado, apertado e tenso que, sob diversos aspectos, espelha a vida em sociedade em uma cidade grande tanto da época como no mundo moderno.

Os trabalhos de design de produção e direção de arte,  são espetáculos à parte que fazem do HMS Surprise um dos melhores personagens inanimados da Sétima Arte que contribui sobremaneira para a imersão na narrativa, com as equipes de figurinos e maquiagem e penteados complementando maravilhosamente bem essa construção visual de se tirar o chapéu. Mas, claro, o filme não seria o que é sem a direção de fotografia de Russell Boyd (em sua quinta de um total de seis colaborações com Peter Weir) que consegue ir das tomadas em planos abertos distantes e vazios, só com mar, céu e navios até sequências de puro caos de batalhas com dezenas de extras em espaço substancialmente confinado, passando por belíssimos momentos líricos que representam visualmente a conexão entre Aubrey e Maturin, notadamente as sequências em que os dois fazem dueto musical para horror do cozinheiro do navio e as tomadas naturalistas, quase alienígenas nas Ilhas Galápagos, o único momento em que os personagens pisam em terra firme e cujas filmagens ocorreram mesmo pelas quase míticas ilhas.

Como Mestre dos Mares foi imaginado com o primeiro filme de uma potencial franquia cinematográfica patrocinada como um projeto pessoal de Tom Rothman, executivo da Fox, que, porém, até hoje não se materializou, o roteiro deixa um interessante final aberto que rima bastante com a estrutura de perseguição do gato ao rato e vice-versa que serve de infraestrutura narrativa, mas que, muito sinceramente, não precisava ter sido assim. Forçar continuações com base nesse tipo de expediente me parece uma demonstração de pouca confiança no material levado às telonas, pois seria perfeitamente possível transformar a realização da dupla central ao final em algo que ocorre no começo de um segundo filme, sem precisar deixar o espectador pendurado em um longa que tinha tudo para ser 100% autocontido. Essa decisão gananciosa é, para mim, o grande equívoco de um longa que simplesmente não precisava desse tipo de expediente, ainda que eu não consiga condenar toda uma obra de alta qualidade meticulosamente produzida em razão de seus dois minutos finais que, com boa vontade, podem até ser vistos como uma piscadela benigna que aponta em uma direção para as continuadas aventuras do capitão e do cirurgião, sem que um fechamento seja realmente necessário.

Em seu penúltimo longa, o australiano Peter Weir, por sinal voltando a trabalhar com ator principal de sua região do mundo, mostra que ele é perfeitamente capaz de lidar com gigantescas e ambiciosas produções hollywoodianas com exatamente o mesmo tipo de cuidado, sensibilidade e visão de seus filmes menores, intimistas, com abordagens eminentemente humanas. Mestre dos Mares é um espetáculo que reúne o melhor dos dois mundos, ou seja, o dinheiro da mais poderosa indústria cinematográfica do mundo com a cabeça autoral de um cineasta que se recusa a se desviar de suas características centrais. E talvez seja por isso que, no final das contas, o longa não tenha sido recebido tão bem em 2003, demorando anos para ganhar o reconhecimento que merece e, mais de duas décadas depois, continua merecendo.

Mestre dos Mares: O Lado Mais Distante do Mundo (Master and Commander: The Far Side of the World – EUA, 2003)
Direção: Peter Weir
Roteiro: Peter Weir, John Collee (baseado em romances de Patrick O’Brian)
Elenco: Russell Crowe, Paul Bettany, James D’Arcy, Edward Woodall, Chris Larkin, Robert Pugh, Max Benitz, Max Pirkis, Lee Ingleby, Richard McCabe, Ian Mercer, Tony Dolan, David Threlfall, Billy Boyd, Bryan Dick, Joseph Morgan, George Innes, Patrick Gallagher, John DeSantis, Mark Lewis Jones
Duração: 138 min.

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