“Disse o homem: ‘Foi a mulher que me deste como companheira que me deu o fruto da árvore, e eu comi’“. A forma que Alex Garland decidiu começar seu mais novo longa remete à passagem bíblica quando Adão e Eva se escondem para encobrir a nudez diante de Deus. O homem é questionado do porquê compreende esse estado, e se comeu o fruto proibido. A resposta vista em Gênesis 3:12, é de Adão culpando a mulher por então lhe oferecer o fruto, esse que se tornou símbolo de tentação e pecado: “a maçã”. A cena de Harper (Jessie Buckley) chegando ao jardim da casa de campo que alugou para passar duas semanas, se deparando com uma chamativa macieira no centro e consumindo o fruto, é emblemática para introduzir as alegorias que definem o escopo do filme: ali foi início de tudo; o surgimento do pecado. A culpa, então, é da mulher.
Com flashbacks narrados em ordem decrescente, entendemos o motivo que levou Harper a tal estadia: a trágica morte de seu ex-marido. Nesse ponto, é curioso notar como as informações vão sendo passadas: o uso da música Love Song, de Lesley Duncan, enquanto a edição intercala trechos do passado com a linha presente servindo um tom de calmaria para a mudança de cenário para a personagem. Antes, os contrastes de cores vibrantes e quentes irradiando o ambiente conflituoso, agora, a paisagem bucólica caracteriza a busca por fuga de Harper, que chega ao local pretendido.
Embora o título pareça entregar muita coisa do que Garland almeja contar, a alegoria nada sutil que estampa o filme é só uma das peças que compõem a síntese de sua mensagem, óbvia, porém necessária e relevante, que procura no exercício de gênero e nos simbolismos uma maneira de abordar o enredo longe da trivialidade esperada. Ao empregar a passagem de Gênesis, Garland volta propositalmente para o questionamento: “Onde começa a culpa da mulher?”. Ter esse ponto de partida, na criação, relembramos como a imagem feminina passou a ser atrelada aos mecanismos da tentação, do que influencia, do que manipula, da perda do paraíso e da inocência para o que é vergonhoso. Se a tendência pecaminosa do homem viu brecha graças à desobediência da mulher, o roteiro de Men permite inverter um pouco essa ótica, ao refletir sobre como a figura feminina é vista na sociedade e o comportamento masculino é normalizado.
Comer a maçã não é a entrada do pecado aqui, mas é onde Harper passa a experimentar o inverso do que imaginava ao viajar para um casarão de campo. Nesse sentido, o dono da casa, Geoffrey (Rory Kinnear) é um dos primeiros exemplos dos “homens” sinalizados no título: perfil cortês, simpático, causa constrangimento ao fazer uma piada de que Harper não deveria ter comido do fruto proibido, em seguida, passa a demonstrar um incômodo constante por sua inquilina possuir sobrenome de casada, mas não estar acompanhada de um marido, assim, sempre se refere a ela como “Sra. Marlowe”. Desse modo, essa atitude tipifica a microagressão vinda de um lugar de gentileza, do homem de jeito educado e decente, que exibe tal conduta, mas que sai isento de ser visto como machista por conta da personalidade simples e adorável — inclusive, é pelo mesmo motivo que Harper tem dificuldade para enxergar maldade em qualquer ação de Geoffrey.
Sendo o lugar o típico refúgio que se transforma em um amargo pesadelo, conforme Harper conhece mais, explorar os arredores além da casa se torna um passeio acolhedor e esperançoso, representando ali a figura de Eva experimentando a liberdade e inteirando-se com o Jardim do Éden. Nisso, entra o momento de virada que tira esse deleite da personagem, na famigerada cena em que adentra a um antigo túnel de uma linha de trem. De ponta a ponta, temos o vislumbre da fotografia que enquadra a silhueta de Harper no lugar escuro, descobrindo a sensação de arbítrio ao se expressar com notas vocais para o espaço vazio e só ter a própria companhia. No entanto, essa plenitude é ameaçada quando do outro lado alguém parece repetir exatamente os mesmos passos, mas reproduzindo o som com um tom muito mais pesado e agressivo. Sendo um excelente exemplo de como Garland constrói a atmosfera psicológica e utiliza da trilha sonora para imersão ao terror, a sequência esbanja uma alegoria a como a personagem é pressionada pelos dilemas que acompanham a tragédia de seu casamento. Harper estava sentindo a anatomia na privacidade, mas naquele instante, o trauma que estava tentando deixar para trás nessa viagem, passa a persegui-la e arrodear — nesse trecho, o lugar agora parece um labirinto, fazendo a protagonista se sentir presa e andar em círculos.
Foi uma escolha certeira ter definido Kinnear para interpretar todos os papéis masculinos do filme, cada um representando um sintoma do patriarcado com direito a alusões à mitologia grega — sendo essa expressa pelo Padre, que se refere como cisne, um aceno ao mito de quando Zeus transformou-se em cisne a fim de se aproveitar de Leda, rainha de Esparta. Das muitas figuras vividas por Kinnear, algumas vale um pouco de atenção, como o Padre que tem um comportamento predador, intimidador, visando se beneficiar do cargo para abusar dos fiéis, mas em uma conversa com Harper, não perde tempo para suavizar as atitudes do falecido ex esposo dela, impondo que a tragédia ocorrida poderia ser diferente se ela o tivesse perdoado, o que denota um típico ciclo que as mulheres experimentam em relações abusivas, sendo incentivadas a relevar as ações dos parceiros. Porém, além do longa trazer as esperadas aparições de homens apontadas no título, é notório como Harper se vê constantemente acuada e inibida quando tenta expor seu desconforto e receios de uma insegurança.
Seguindo a idealização de como cada arquétipo é personificado em Men, há um contraponto empregado através das representações nas esculturas do Homem Verde e de Sheela-na-gig. Garland dedica certos momentos para dar ênfase a essas esculturas que vão se relacionando com a trama até atingir ao agonizante clímax. Vamos aqui lembrar que logo após a passagem de Harper pelo túnel, é quando o homem nu, inicialmente entendido como Adão, passa a aparecer. Depois, esse papel vai assumindo a caracterização do Homem Verde, figura relacionada com o ciclo de crescimento da natureza, mas aqui soma a ideia de uma representação do que seriam os sintomas enraizados do patriarcado, já Sheela se mostra como um símbolo da fertilidade. Por isso, o ato final demonstra uma apropriação da fertilidade do Homem Verde para ilustrar como o comportamento patriarcal pode ser reproduzido na sociedade.
Se tiver alguma maneira de resumir Men: Faces do Medo, é que Garland criou um folk horror que se mistura com um terror psicológico e horror body intenso, desconcertante e bizarro, mas que nunca consegue atingir seu potencial narrativamente. Um recurso muito bem utilizado, é como a edição de som, composta por Geoff Barrow e Ben Salisbury entra em substituição ao que poderia ser um familiar jumpscare. Somando-se a isso, o uso de slow motion para dar mais intensidade à demonstração de terror, com um design de produção impecável que aproveita a pouca iluminação de cenário para trazer ainda mais imersão. O que vale também notar a presença da dente-de-leão em vários momentos, podendo reforçar a ideia de fertilidade ou o conflito de Harper para encontrar esperança. Nisso, entra outro detalhe importante, uma vez que Kinnear representar as facetas da masculinidade, o roteiro insere sutilmente duas mulheres diferentes que dialogam com as questões de Harper — atenção para a conversa com a policial e a chegada de Riley (Gayle Rankin), amiga de Harper.
Mesmo que possua um forte potencial, e um trabalho técnico que, aparentemente soa muito simples mas que contribui com maestria para a construção de terror psicológico do longa, é uma pena que Men nunca pareça engatar efetivamente. Contudo, não temos um caso de que interpretar as alegorias é o que irá resumir e validar a produção, e sim que além simbologias, Garland conseguiu compor um filme que consegue atingir de várias formas por sua composição técnica e enquadramentos essenciais da fotografia marcante e habilidosa de Rob Hardy.
Men – Faces do Medo (Men – Reino Unido, 2022)
Direção: Alex Garland
Roteiro: Alex Garland
Elenco: Jessie Buckley, Rory Kinnear, Paapa Essiedu, Gayle Rankin, Sarah Twomey, Zak Rothera-Oxley
Duração: 100 min