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Crítica | Memórias do Subdesenvolvimento

Existencialismo político.

por César Barzine
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Os anos 60 foram uma época de intensa inquietação política ao redor do mundo, e o cinema refletiu de forma pujante todo esse zeitgeist, principalmente em sua segunda metade. Foi a década de filmes como A Batalha de Argel, A Chinesa e Z, capturando as conjunturas sociopolíticas de seus respectivos países. Nesse cenário, há uma certa nação que se destacou no imaginário popular: Cuba. A revolução na ilha em 1959 não foi apenas um grande movimento de ruptura vindo da esquerda, mas também um golpe direto aos EUA e a demonstração de que um grupo não muito grande de guerrilheiros poderiam desafiar os poderes nacionais e internacionais vigentes no país de Fulgencio Batista. Desta forma, Memórias do Subdesenvolvimento parte desse imaginário, de uma aura mística a ser naturalizada, questionada e confrontada ao longo do filme. 

Antes da revolução, há um país; e, neste país, há um homem: Sergio. Existe, então, o estado de relações entre um indivíduo e seu meio. Memórias do Subdesenvolvimento é quase um diário e, portanto, exterioriza a mais íntima subjetividade de Sergio – principalmente graças à  narração em off, responsável por externar seus pensamentos – em vez de caminhar a uma possível objetividade narrativa da qual o personagem fosse apenas um sujeito passivo. A relação entre ele e seu país nunca é estável, restando a dúvida e um certo sentimento de desnorteamento que perdura dentro de si. Uma das primeiras sequências do filme mostra aeroportos, a mulher de Sergio o deixando e o relato de que ela e seus familiares abandonaram aquele “novo país” e foram para Miami – como muitos cubanos mais abastados, de fato, fizeram. A Sergio, resta a dúvida de também ir ou ficar. Não há convicções pendendo para nenhum dos dois lados, a única coisa que há são conceitos vagos de um homem sem pertencimento territorial ou ideológico.

Sergio não é a figura alvo daquela revolução. Ele é um homem com grana, de meia-idade, sem família e, agora, sem esposa. Ele não tem nada para lutar ou se apegar. É um sujeito plano que não possui mais nada para fazer em seu apartamento, daí surge a ideia de escrever um livro. “Vamos ver se tenho ideias em mente“, diz ele. Temos um intelectual pequeno-burguês sem teses concretas, mas com algumas noções políticas soltas por aí. Vemos um homem numa situação quase niilista que carece de qualquer coisa para construir, manter ou acreditar. Resta, a ele, somente escrever livros que provavelmente não irá terminar, se relacionar com mulheres sem muito interesse ou reclamar da sociedade sem saber o que colocar no lugar.

Neste sentido, do intelectual preso entre o romantismo e a tragédia, perdido numa conjuntura de transformações políticas, Sergio se aproxima de Paulo, de Terra em Transe. Para ambos, compreender o que se passa é difícil, e as narrativas não convencionais dos dois filmes exprimem essa bagunça. No caso de Memórias do Subdesenvolvimento, a narrativa se afunda no interior de Sergio – quase como um fluxo de consciência – para marcar seu olhar com o tempo-espaço ao redor; impondo, assim, a exposição de um macrocosmo por meio de uma visão totalmente subjetiva. Em relação a isso, a narração de Sergio é a peça-chave para construir essa ponte. O personagem diversas vezes comenta sobre si, mas são suas falas sobre a revolução e o país em que vive que mais chamam a atenção.

Como superar o subdesenvolvimento?“, é algo que várias vezes ele questiona. Ao que parece, esse subdesenvolvimento não é só social e econômico, mas também comportamental, já que, em diversos momentos, Sergio demonstra desprezo por Cuba e seu povo – mas não o suficiente para fazê-lo cair fora dali. Outra pergunta é se Cuba mudou ou mudou ele. No final das contas, pelo que é retratado no filme, a revolução e a ditadura de Fidel Castro não acarretam alterações significativas dentro de seu círculo; isso centrado em sua perspectiva cotidiana e individual. Diante dessa postura meio apática ligada à política, Sergio vai procurar refúgio nas relações humanas – ou superficialmente humanas.

Ele passa a se relacionar com a sua jovem empregada, um namoro claramente desinteressado que se resume a sexo e a uma tentativa frustrada e mecânica de preencher o seu vazio. O protagonista tenta apresentar a ela a alta cultura e percebe a sua frivolidade. Mais tarde, acaba se metendo numa grande confusão entre a moça, sua família e até a Justiça. Esses dois fatores realçam o subdesenvolvimento cultural e comportamental daquele povo  ao  qual Sergio sente-se tão desencantado. A tal confusão é que essa nova namorada o acusa de ter se aproveitado sexualmente dela, fazendo com que sua família venha tirar satisfações. Todas essas situações levam ao desenvolvimento de uma trama que tira um pouco o filme de suas contemplações políticas, criando algo mais narrativo; porém, ainda assim, contribuindo para o sentimento de vazio do protagonista consigo mesmo e aquele espaço.

A linguagem de Memórias do Subdesenvolvimento passa por três elementos distintos: o desenrolar da trama em si, a narração do protagonista e filmagens de arquivos ou flashbacks que interrompem a linearidade do filme. A narração, quando não sobreposta a essa ordem, acaba sendo constituída por monólogos interiores. Já quando é aplicada às imagens de arquivo, desloca-se da digressão psicológica para a sociológica, tratando do artista que é comunista em Paris – o que é algo “fácil” para Sergio –, do sentimento individualista que pode haver nas guerrilhas e da busca cubana por “soberania e integridade” alegada pelo Fidel em filmagens reais. O filme é um caleidoscópio de imagens, vozes, ideias, contextos e sentimentos. Uma narrativa que, assim como nosso protagonista, é desnorteada, carece de rigor ou de continuidade. É a falta de horizontes que Sergio sempre alega acerca de Cuba e do subdesenvolvimento. E o que vale para esse país, vale para ele também; como uma ilha dentro de outra ilha.

Memorias del subdesarrollo (Cuba, 1968)
Direção: Tomás Gutiérrez Alea
Roteiro: Edmundo Desnoes (romance e roteiro), Tomás Gutiérrez Alea
Elenco: Sergio Corrieri, Daisy Granados, Eslinda Núñez, Omar Valdés, René de la Cruz, René Depestre, Edmundo Desnoes
Duração: 97 minutos.

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