Home FilmesCríticas Crítica | Memórias da Chuva

Crítica | Memórias da Chuva

Recortes imagéticos de uma antiga cidade.

por Frederico Franco
319 views

Por uma estranha consequência do destino, Jaguaribara foi citada por dois filmes exibidos no mesmo dia: Mais Pesado é o Céu e Memórias da Chuva. No segundo, o município é o principal tema do filme, terra do diretor Wolney Oliveira. No documentário Memórias da chuva conhecemos um pouco mais da história da cidade, que foi basicamente destruída e remontada em outro lugar devido a construção de uma barragem que iria interromper o abastecimento de Jaguaribara. Logo no princípio, somos introduzidos a recortes imagéticos da antiga cidade; um personagem nos conduz por aquilo que ele afirma ter sido um cemitério. Passeando pela cidade destruída, em meio a ruínas, acreditei que iniciaria um conto similar ao filme Cidades Fantasmas, documentário realizado sobre cidades abandonadas ao redor do Brasil. Mas, estava enganado: as semelhanças dos filmes param por aí, apenas nessa primeira apresentação. As abordagens são diametralmente opostas e o resultado final também é distante. 

Memórias da Chuva desenvolve sua narrativa a partir de imagens de arquivo gravadas em meio ao processo de destruição da cidade e de depoimentos atuais de ex-moradores da antiga Jaguaribara. O uso das antigas é um bom subterfúgio narrativo para criarmos identificação e estabelecermos uma relação emocional com a cidade. Surge uma espécie de construção de memória visual por parte do espectador. Existem, no entanto, poucos momentos que vão desenvolver gatilhos emocionais no espectador ao comparar a antiga cidade destruída e seu passado glorioso. O que se percebe é que Wolney Oliveira aparenta querer desenvolver a narrativa toda a partir do relato oral – uma abordagem justa. O grande porém é que o filme peca pelo excesso: são incontáveis os personagens selecionados para depoimentos, passando facilmente de vinte pessoas.

Essa fragmentação do discurso, que vai de políticos a pescadores, impede o espectador de estabelecer qualquer tipo de identificação com os entrevistados. Por mais que soe estranho, documentário também é saber construir e selecionar personagens. Nem todas as pessoas, por mais carismáticas e por maior relevância que tenham, funcionam enquanto protagonistas de filmes documentais. E a “culpa” não é dos entrevistados. Cabe ao diretor construir e selecionar aqueles personagens que melhor podem auxiliar em suas narrativas. Aqui, a maioria dos entrevistados ou são redundantes ou não conseguem se posicionar enquanto protagonistas – há uma personagem que chega a ler parte de seu depoimento.

Menos é mais. Cito aqui, inclusive, um filme que divide similaridades com a obra de Wolney Oliveira: A cidade é uma só, do diretor Adirley Queirós de Ceilândia. Aqui, o realizador conta a história de sua cidade e do despejo de Brasília através da vida pessoal de um único personagem. Sua história de vida se mistura com a história da construção da cidade. Tal abordagem, além de aproximar mais o espectador, também proporciona uma narrativa que transita entre o geral e o específico, algo que Queirós realiza com maestria.

Por mais que possua alguns problemas de construção de personagens, Memórias da Chuva possui méritos evidentes. Com certa ironia e acidez, a montagem do filme sabe modular a articulação entre promessas do passado que não foram concluídas. Falas de políticos prometendo algo que não foi cumprido, é logo justaposto pela realidade completamente oposta. Esse tipo de invenção aparenta colocar mais o diretor dentro do filme. Se em dado momento parece que o diretor apenas ligou o rec da câmera, aqui vemos sua capacidade criativa através do direcionamento da montagem. Quando, por exemplo, personagens do passado são trazidos para o presente, o filme consegue extrair alguma ou outra declaração interessante que ajude a compreender como todo esse trâmite político afetou as vidas dos ex-moradores de Jaguaribara.

A seleção das imagens de arquivo, em geral, é eficiente, principalmente quando nos é mostrada a cidade como um todo, os personagens discutindo e tentando compreender os planos que políticos reservam para a cidade. As cenas de debates políticos, todas gravadas em película, representam bem o caos e o amadorismo dessa captura. Há ali, sobretudo, a captura do espírito da cidade naquele momento. Debates, arguições, dúvidas: a cidade aparenta estar dividida. Alguns acreditam nas promessas, outros nem tanto. Existe, ainda, uma potência resguardada para o final do filme. As imagens de destruição da cidade são perfeitamente posicionadas na estrutura narrativa de Memórias da Chuva. No final, depois de incansáveis depoimentos, surgem as imagens de retroescavadeiras destruindo tudo que vem pela sua frente: escolas, igrejas, casas. A crueza com a qual vemos esses trechos é emocionante. Some a trilha musical, somem os talking heads, sobra apenas o som da destruição. É aqui, também, que os personagens conseguem tocar o espectador. Falas surgem com mais carga dramática. 

Assim como a cidade, as memórias parecem cada vez mais distantes, próximas de cair no esquecimento da população. Cabe, então, às imagens manterem vivas tanto a memória da cidade quanto a brutalidade de sua destruição. Não existe apenas a lembrança boa: com ela vem, inevitavelmente, a recordação do fim, daquela imponente retroescavadeira destruindo tudo em sua volta.

Memórias da Chuva – Brasil, 2023
Direção: Wolney Oliveira
Roteiro: Wolney Oliveira, Margarita Hernández
Duração: 77 min.

Você Também pode curtir

Este site usa cookies para melhorar sua experiência. Presumimos que esteja de acordo com a prática, mas você poderá eleger não permitir esse uso. Aceito Leia Mais