SPOILERS!
Lançado em 1997, Meia-Noite no Jardim do Bem e do Mal trata sobre a cobertura para uma revista que o repórter John Kelso (John Cusack) realizará sobre a festa de natal de James “Jim” Williams (Kevin Spacey), um colecionador de relíquias que conquistou uma fortuna através do trabalho. A festa, muito conhecida e desejada pela elite de Savannah, a cidade onde ocorrem os fatos, termina com um final trágico, pois Jim acaba matando Bill “Billy” Hanson (Jude Law), um jovem que trabalhava na oficina de restauração do milionário. O problema é que a polícia não crê na versão de legítima defesa do bem abastado colecionador, algo que pode o levar a condenação por homicídio. Afinal, o que realmente aconteceu?
Inicialmente, este aparenta ser um dos filmes mais diferentes de Clint Eastwood enquanto diretor. Logo de cara o realizador cria uma atmosfera estranha quando o protagonista John chega à cidade. Parece que o repórter está sempre sendo observado por alguém, como se os moradores do pacato local estivessem tramando algo contra ele. Após o assassinato de Billy, entretanto, essa impressão desaparece e o filme toma um rumo completamente diferente àquele de mistério e conspiração inicial, seguindo pelo caminho do crime e da investigação da morte e revelando o que acredito ser o principal ponto proposto por Eastwood: aparências.
Absolutamente tudo na obra não é o que aparenta ser, incluindo ela própria. Temos Mandy (Alison Eastwood) e Joe (Paul Hipp), o aparente casal que são só amigos; Sonny (Jack Thompson), o advogado de Jim que se prova alguém mais humano e sensato do que se havia pensado; o próprio James Williams, que parece se encaixar perfeitamente na alta sociedade conservadora e heteronormativa tradicional, é, na verdade, gay. E aqui temos um ponto importante dentro da crítica apresentada pelo diretor.
A homossexualidade de Jim é usada para expor o preconceito e a hipocrisia dessa elite que, antes de tomar conhecimento do fato, tinha no milionário alguém extremamente agradável e bem quisto, uma pessoa que todos gostariam de desfrutar sua presença e amizade. Isso torna-se evidente durante a festa de natal, quando os ricos lotam a casa do então amigo e buscam sempre a proximidade com ele, mas mudam drasticamente quando Jim precisa de testemunhas favoráveis em seu julgamento e ninguém se apresenta para defendê-lo no tribunal. Independente do quão boa pessoa pudesse ser, o fato de ser gay é completamente execrável dentro de seu círculo social.
O mesmo círculo social que brinca com armas de fogo carregadas em um local fechado e banaliza a morte até mesmo de seus companheiros amorosos. O suicídio dos maridos de duas integrantes da elite, por exemplo, é motivo de piada e gozação, mesmo durante a festa de nascimento de Jesus Cristo, já a relação homoafetiva é altamente condenável. Todas contradições, excentricidades e hipocrisias lembraram-me, em certa medida, de O Discreto Charme da Burguesia, de Luis Buñuel, obra também crítica dos hábitos dessa parcela da sociedade.
Não satisfeito em abordar a homofobia, o diretor vai mais fundo no campo dos preconceitos e traz o racismo e a transfobia para o centro da trama com a mesma intensidade. Peguemos o caso de Lady Chablis (Lady Chablis), uma travesti negra que acaba criando amizade com John por possuir uma relação de proximidade com a vítima, o que ajudaria o repórter a entender melhor o caso e ajudar Jim. Em determinado momento, ela aparece em um baile de debutantes em que, com exceção de Kelso, são todos negros e negras. A partir do momento que aparece, é visível o desconforto geral dos presentes e o julgamento através de olhares que Lady Chablis sofre.
Quem conhece Clint Eastwood sabe do seu caráter conservador, então, por que uma abordagem tão progressista e questionadora? Porque para ele de nada importa orientação sexual, cor da pele ou status social, desde que seja uma boa pessoa (e, pasmem, isso nada tem a ver com progressismo ou conservadorismo). É algo que fica evidente quando observamos as pessoas que compõem o júri no caso da morte de Billy. São mulheres e homens de variadas idades, crenças, etnias, classes e, provavelmente, orientações sexuais.
Durante as sequências do tribunal, geralmente quando se revela/aborda a relação amorosa entre Jim e Billy, cortes rápidos são utilizados para mostrar as diferentes reações de vários dos presentes. Dentre os mais variados perfis, vemos expressões atentas, de reprovação, nojo ou indiferença, reforçando a ideia de que o preconceito pode estar presente em qualquer um e o importante para ser uma boa pessoa não é sua aparência, mas seu interior.
Isso nos leva para a abordagem da religião e da relação entre vida morte, também presentes no filme e representada, especialmente, por Minerva (Irma P. Hall). Sua personagem é uma praticante da tradição religiosa vodu e acaba sendo como uma espécie de ponte entre os vivos e os mortos (é como vemos a comunicação entre Jim e Billy acontecer em boa parte da fita). A escolha de uma religião como vodu, dificilmente abordada em obras cinematográficas, e a construção de Minerva como uma sábia detentora de mais conhecimento que os demais é quase uma provocação do diretor para a plateia. A primeira impressão ao ver Minerva e seus rituais foi de respeito ou ficou mais próximo das reações de reprovação dos preconceituosos no tribunal?
Tal qual o quadro da pintura sobreposta de Jim, que esconde algum segredo além da obra, os assuntos de cunho pessoal e privado não deveriam importar para mais ninguém a não ser os envolvidos. O esforço em manter as aparências prova-se como algo extremamente tóxico e prejudicial em Meia-Noite no Jardim do Bem e do Mal, assim como no mundo real e em nossas vidas.
Meia-Noite no Jardim do Bem e do Mal (Midnight in the Garden of Good and Evil) – EUA, 1997
Direção: Clint Eastwood
Roteiro: John Lee Hancock
Elenco: John Cusack, Kevin Spacey, Jude Law, Alison Eastwood, Jack Thompson, Irma P. Hall, Paul Hipp, Lady Chablis, Dorothy Loudon, Anne Haney, Kim Hunter, Geoffrey Lewis, Richard Herd, Leon Rippy, Bob Gunton
Duração: 155 min.