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Crítica | Megalópolis

Nem todos os caminhos levam a Roma.

por Ritter Fan
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Existem dois pontos igualmente importantes a serem considerados em uma análise de Megalópolis, um deles sendo o filme em si, claro, e o outro o que ele significa para a Sétima Arte. E tomarei a liberdade de começar pelo segundo ponto, que considero muito relevante especialmente nos dias atuais em que Martin Scorsese não encontra espaço para seus filmes no cinema, só no streaming; Woody Allen precisa basicamente mendigar mundo afora por investimento em seus projetos; Clint Eastwood terá seu provável último filme lançado em ridículas 50 telas nos EUA; e Francis Ford Coppola precisou vender sua amada vinícola para obter dinheiro suficiente para bancar um projeto de paixão seu, tendo enorme dificuldades até mesmo de convencer os estúdios de distribuí-lo depois de pronto, em uma clara demonstração de que Hollywood é exatamente aquilo que sabíamos que sempre foi: uma “entidade” marcada pela ingratidão, desdém e frieza, preocupada apenas e tão somente com aquilo que é capaz de gerar retornos imediatos de investimentos, o que significa basicamente focar em franquias coloridas e gigantescas que não têm conteúdo algum, não muito diferente do panem et circenses da Roma Antiga. E não achem vocês que nós, espectadores, não devemos assumir parte dessa culpa.

Pode ser uma discussão do tipo “Tostines”, mas ela é importante, já que, na mesma medida em que o espectador é treinado pelos estúdios a gostar de apenas um “tipo de filme”, o espectador se deixa acomodar e se entrega justamente ao entretenimento raso, fácil, que não exige o emprego de massa cinzenta. Todos nós estamos sujeitos a isso, evidentemente, mas cabe-nos tentar lutar contra o torpor e prestigiar obras como Megalópolis, independente de sua qualidade, pois ela representa exatamente tudo o que Hollywood não preza, algo ainda mais evidente atualmente pela confluência de variados fatores, incluindo aí o legado da pandemia, a Guerra do Streaming, custos elevados e assim por diante. Megalópolis é, portanto, fora das telas, justamente o que seu protagonista tenta construir, uma utopia que só terá alguma chance de realmente ser materializada, mesmo que em pequena parte, se mostrarmos que é isso que queremos. E o que queremos ou, pelo menos, deveríamos querer? Em poucas, palavras, obras que se arriscam, que fazem o diferente, que procuram originalidade e não repetição. Em mais palavras, produções profundamente autorais, que permitem que a visão de seus criadores realmente chegue às telonas sem influência exacerbada de engravatados e do público, que prestigie tanto cineastas novos quanto aqueles que, um dia, revolucionaram a própria Hollywood mas que, hoje, são vistos como “gente velha que não tem mais lugar”.

E é importante deixar claro que o filme independente “puro” vai bem e obrigado. Não falo deles aqui, dos filmes pequenos, que custaram centavos e que circulam por Sundance ou em festivais obscuros, mas sim do “independente hollywoodiano”, que é uma categoria própria e que, hoje, está caminhando a passos largos na direção da extinção, mesmo que a história prove por A+B que a Hollywood de hoje é justamente fruto desse tipo de filme, aquele que é feito a contragosto pelos estúdios que duvidam de sua capacidade de vender ingressos, somente para eles mudarem a forma de se produzir filmes e, ironicamente, tornarem-se o padrão. Se o público não tivesse ido em hordas para ver Guerra nas Estrelas, talvez o panorama atual fosse muito diferente. O ponto que estou enrolando para chegar é consideravelmente prosaico: cinema é experimentação tanto pelo cineasta, quanto pelo público, e essa maneira de fazer e de se apreciar obras tem se perdido nos chamados “tiros certos”, ou seja, um jeito apenas de fazer filmes e idas aos cinema para assistir somente aquilo que basicamente se sabe que vai gostar. Sim, entendo que ir ao cinema é caro e tem ficado cada vez mais, mas o que se nota por aí vai além dessa preocupação e esbarra na conveniência pura e simples e em um grau razoável de aversão à coisas diferentes. Toda semana temos um Deadpool & Wolverine, mas quase nunca temos um Megalópolis, especialmente em nosso país, onde a distribuição cinematográfica é no mínimo errática.

E não, de forma alguma estou afirmando que temos que gostar do que vemos no cinema, que, mais especificamente, temos que gostar de Megalópolis, objeto da presente crítica. Não é nada disso. Temos, apenas, que estar abertos a filmes assim, a experiências que estão além de nossa zona de conforto, e, muito sinceramente, o nome e o currículo de Francis Ford Coppola deveria ser razão suficiente para que seu ambicioso longa entrasse na lista obrigatória de qualquer um que goste de Cinema. Novamente, vale dizer que não temos que gostar de Megalópolis. Não temos que nos curvar ao pedigree que supostamente um nome traz, até porque Coppola – de maneira semelhante ao seu colega de mesma geração, só que do outro lado do oceano, Ridley Scott –  tem uma série de filmes extremamente problemáticos em sua carreira, isso porque escolhi usar apenas um eufemismo. E é claro que eu gostaria de, com todo esse gigantesco prólogo, afirmar que Megalópolis é uma obra-prima, que é Coppola retornando ao seu auge, que é a persistência de mais de 40 anos revelando-se como um filme visionário, ímpar, que contribui para mudanças de paradigmas cinematográficos.

Mas não é.

O sonho megalômano de Coppola que, ao ser cultivado por décadas a fio, tornou-se uma obsessão, apesar de ter seus (poucos) bons momentos e um visual por vezes muito (mas não extraordinariamente) inspirado, além de um elenco gigantesco repleto de medalhões de diversas gerações, é uma bagunça completa, um longa que nasce datado, que vem à luz já velho, como se a visão que o cineasta teve no final da década de 70 tivesse ficado congelada naquele período, ganhando apenas alguns enxertos obrigatórios de comentários sociopolíticos mais diretamente afeitos aos anos recentes (um tronco no formato de suástica, jura?). Em determinado ponto do longa, um personagem diz que há que se ter cuidado para que uma utopia não se torne uma distopia e essa é uma descrição apta que se encaixa bem demais à Megalópolis, tão bem que talvez isso seja o próprio Coppola reconhecendo que ele fez o máximo que ele podia fazer, mas que não foi o suficiente. Sua tentativa de, bebendo de seus próprios filmes, estabelecer paralelos na base da marretada entre a queda do Império Romano com o que ele imagina que possa ser o futuro dos Estados Unidos referenciando eventos históricos diretamente, com especial destaque para a Conspiração Catilinária e desnecessariamente mudando o nome de Nova York para Nova Roma, é, no frigir dos ovos, um exagero teatral de sobretons carnavalescos que tem uma visão de futuro tão canhestra que parece mais um filme de ficção científica dos anos 50 imaginando que, nos anos 80, já teríamos carros voadores.

Girando ao redor do sonho do brilhante inventor e arquiteto Cesar Catilina (Adam Driver) que ganhara o Prêmio Nobel por criar um material de construção revolucionário que batizou de megalon, de reconstruir Nova Roma como uma utopia tecnológica, o longa deixa imediatamente clara a crítica ao controle do país (e do mundo) pelo super-ricos e pelos políticos que fazem o que querem, quando querem, em um eterno jogo que ignora a população comum. Esse tema é trabalhado com a mesma sutileza e discrição que o roteiro de Coppola trabalha as conexão com a Roma Antiga, que incluí intertítulos bregas imitando mármore, narração em off mais didática e exagerada – e bem menos charmosa – do que a de Blade Runner por Laurence Fishburne (que vive Fundi Romaine, o motorista/mordomo/faz-tudo de Cesar), figurinos que parecem ter vindo diretamente de Calígula, nomes de personagens que não tentam esconder suas funções e personalidades, diálogos inteiros em latim simplesmente porque sim, e assim por diante. Aprendemos tudo o que temos que aprender sobre o filme nos primeiros 10 minutos e toda a duração restante é dedicada a repetir esses ensinamentos com pequenos incrementos, mas sem efetivamente desenvolver uma narrativa completa, por mais surrealista que ela tente ser logo de início, com a bela (e enervante) sequência em que Cesar para o tempo no topo do icônico Chrysler Building, com um Coppola tentando decidir se seu filme é um repositório de ideias soltas que ele teve ao longo dos anos ou algo que realmente tenha estrutura.

A direção de Coppola é desajeitada, histérica, autoindulgente, como se estivesse filmando teatro ao vivo, mas sem saber para que lado apontar a câmera por querer mostrar tudo o que for possível mostrar em cada um dos 24 quadros por segundo que tem disponível, como se ele fosse uma criança exibindo, entusiasmada, os brinquedos novos para os parentes na noite de Natal. Tudo é gigantesco e grandioso, mas ao mesmo tempo parece acanhado e pequeno, como se o próprio filme estivesse em uma Terra de Ninguém tripartite entre o que ele é, o que ele quer ser e o que ele tem que se contentar em ser em razão de uma conjunção de fatores que vão desde seu cozimento (ou seria congelamento?) na mente de Coppola por quase 50 anos, problemas orçamentários que levaram à problemas na produção e uma enorme dificuldade em criar uma identidade que se fixe na mente do espectador para além de um sonho transformado em obsessão, por sua vez encurralado na “esquina do que dava para fazer diante das circunstâncias”. E ali, entre as trincheiras, os diversos nomes do enorme elenco que inclui veteranos como Dustin Hoffman e Jon Voight, passando por favoritos modernos como Laurence Fishburne e Giancarlo Esposito, e também um pessoal mais recente como Aubrey Plaza, Nathalie Emmanuel, Jason Schwartzman e Shia LaBeouf, além do próprio Adam Driver, ficaram perdidos, sem saber muito bem o que fazer, talvez por não estarem entendendo muito bem o que estava acontecendo ou por Coppola ter falhado na direção de pessoas, o que não é incomum em seu caso. Com isso, os atores parecem ter se agarrado ao conforto de seus respectivos padrões ou personas que criaram ao longo dos anos, a ponto de ser difícil enxergar os personagens que vivem, mais parecendo que eles se contentaram em ser eles mesmos, apenas exagerando a performance de maneira a paralelizar a abordagem histriônica de Coppola.

Megalópolis é, no final das contas, uma lição sobre egolatria, lição essa que, infelizmente, não está circunscrita às três paredes em que o longa está inserido, com seus personagens quase que exclusivamente odiosos ou odiáveis em toda a sua glória unidimensional. A egomania de Coppola em colocar na telona tudo o que passou anos ruminando é mais do que evidente em sua obra e é incrivelmente irônico notar que, com isso, ela pode ser encarada de maneira mais autobiográfica do que ele próprio pretendia, com Cesar Catilina sendo uma versão do cineasta, claro, com sua visão utópica para uma indústria tomada de figurões engravatados que controlam o dinheiro, mas também ele próprio incapaz de enxergar em si mesmo os defeitos que imputa aos outros, emulando até mesmo o “poder” do protagonista de parar o tempo, já que esse parece ser um longa que realmente ficou congelado em algum momento do passado. E essa talvez seja, mesmo que inconscientemente por parte de Coppola, a característica que torna Megalópolis realmente interessante. Sim, um dos mais importantes cineastas vivos renovou sua lendária coragem de enfrentar o sistema, de usar seu próprio dinheiro para financiar seu sonho e de lutar a cada passo para vê-lo distribuído pelo mundo, mas ele foi incapaz de perceber que os problemas que ele próprio causou no seio de seu “império” levaram à simbólica queda de sua obra, à transformação de sua utopia em uma bizarra distopia, de seu sonho em pesadelo. Mesmo assim, retornando ao ponto que discuti no começo da crítica, tenho a mais absoluta certeza de que esse é exatamente o tipo de experiência – desconfortável, estranha, tumultuada, por vezes até irritante e por outras vezes frustrante – que, se eu tiver que escolher, não tenho dúvida alguma que eu prefiro ter na sala de cinema, especialmente se, no processo, eu estiver valorizando diretores e histórias descartadas pelo tirânico sistema de Hollywood.

Megalópolis (Megalopolis – EUA, 2024)
Direção: Francis Ford Coppola
Roteiro: Francis Ford Coppola
Elenco: Adam Driver, Giancarlo Esposito, Nathalie Emmanuel, Aubrey Plaza, Shia LaBeouf, Jon Voight, Laurence Fishburne, Jason Schwartzman, Kathryn Hunter, Dustin Hoffman, Talia Shire, Grace VanderWaal, Chloe Fineman, James Remar, D. B. Sweeney, Isabelle Kusman, Bailey Ives, Madeleine Gardella, Balthazar Getty, Romy Mars, Haley Sims
Duração: 138 min.

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