Eu sinto que as únicas qualidades de Medida Provisória partem do campo extra-fílmico. Primeiramente, existe um contexto muito bacana da equipe criativa por trás do filme, passando pelo cineasta Lázaro Ramos e o elenco protagonizado por Taís Araújo, Seu Jorge, Alfred Enoch e Emicida, todos artistas que influenciaram e representaram o povo negro brasileiro de diversas formas na Arte, até o material original do filme, o sucesso teatral “Namíbia, Não”, escrito por Aldri Anunciação, que também virou livro premiado com um Jabuti em 2013. Além disso, o discurso racial da obra é extremamente importante e traz diversos níveis de debate e conscientização para o racismo estrutural no Brasil, inclusive tocando na ferida de certas organizações que censuraram a obra, como também aconteceu com o polêmico Marighella.
Assim sendo, a produção circula o ativismo, no que podemos usar o termo “artivismo” para classificar o trabalho de Lázaro Ramos, utilizando o Cinema como veículo de protesto e engajamento social. Existe verdade na obra enquanto estratégia artística para desencadear uma discussão, sendo que a própria censura é o primeiro ato ridículo que precisa ser problematizado. Notaram como Medida Provisória tem múltiplas camadas extra-fílmicas que dão pano pra manga? É um exercício cinematográfico bem interessante se formos analisar num contexto social e de mercado (por exemplo, por que censurar esse filme se tantos outros com temas similares já estrearam por aqui, seja do Cinema brasileiro ou estrangeiro?).
No entanto, dito tudo isso, dado um leve panorama externo da produção sem se aprofundar tanto, é preciso olhar para a obra de arte em si. Não se esqueçam, importância temática é diferente de execução artística. Muitos filmes falam sobre racismo, feminismo, machismo, homofobia, representação cultural, entre outros tópicos relevantes, mas são pouquíssimos que o fazem com qualidade artística. E, para mim, essa frase anterior resume minha péssima experiência com a obra, mais próxima de um cartaz de protesto nas ruas do que uma experiência cinematográfica verdadeiramente reflexiva. Antes de se aprofundar neste argumento, vejamos a premissa do filme: uma sociedade brasileira distópica aprova uma medida provisória ordenando que os brasileiros de “melanina acentuada” sejam mandados de volta à África, provocando uma reação caótica e resistente daqueles oprimidos, com especial lente para o casal Antônio (Enoch) e Capitu (Araújo), e o divertido André (Seu Jorge, sempre carismático).
Existe uma intenção muita clara de Lázaro em ser acessível para o grande público, colocando seu discurso crítico da maneira mais possivelmente descomplicada. Logo de partida, isso dá um tom superficial à narrativa, sem interesse em qualquer nível de sutileza, nuance ou profundidade em seus temas, colocando personagens para gritarem aos quatro ventos os conflitos raciais em debate. É meio constrangedor quando o conteúdo de um filme é mais falado do que trabalhado, especialmente quando Lázaro tenta proporcionar um tipo de encenação valorosa para os monólogos rasos dos personagens, ou então nas suas sacadas visuais óbvias e pobres, como um racista comendo sorvete de chocolate.
São críticas raciais muito brandas, feitas numa espécie de zona de conforto para a audiência, desde o governo maldoso até as caricaturas preconceituosas, como nas personagens de Adriana Esteves e Renata Sorrah, proporcionando um jogo bobo para o espectador médio apontar o dedo para a tela e identificar alguns clichês sociais e ponderar por alguns minutos tudo que já sabia sobre preconceito no Brasil, além de nunca meditar sobre si mesmo como cidadão. Para um filme que se vende como radical em sua premissa absurda, é estarrecedor como Lázaro joga pela segurança, sem explorar qualquer tipo de elemento crítico do filme, seja o meio político, social, educacional ou até de dramas pessoais. Aliás, é difícil sentir algum nível de empatia ou conexão emocional com os protagonistas mal trabalhados e bem pouco complexos, basicamente avatares genéricos para transmitir o discurso aprazível do roteiro.
Nesse sentido, podemos criticar a falta de processo narrativo da obra. Lázaro não consegue criar tensão nas perseguições nas ruas, muito menos angústia nos períodos que Antônio e André passam sem comida (ou insulina, já que aquele conflito existe de forma aleatória e sem impacto na história), e, se possível, tem ainda menos rigor para transpor o sentimento de sobrevivência coletiva nos AfroBunkers, que são mais julgadores do que representativos da cultura negra. Afinal, qual é o significado daquela sequência que eles matam um homossexual branco? Círculo vicioso? Pessimismo? Honestamente, me parece uma escolha arbitrária para mostrar os “dois lados da mesma moeda”, confortando o público no pensamento de que violência é chumbo trocado, pelo que eu digo: imparcialidade na Arte é morte criativa. Lázaro parece querer confrontar o brasileiro ao mesmo tempo que passa a mão na cabeça do preconceito.
Mas, vamos lá, talvez o intuito é ser ambíguo, certo? Para isso, eu respondo que Medida Provisória é tão ambíguo quanto suas piadinhas de mau gosto que tentam dar à obra um tom de sátira, mas que na verdade tiram a potência das críticas e dos dramas para novamente colocar a audiência numa segurança com pequenos risos. A comédia é só mais um elemento simplificador de Lázaro para tornar seu protesto audiovisual de fácil digestão, e consequentemente vazio de substância ou efeitos dramáticos. Vou além e digo que a escolha de Wagner Moura por escalar Seu Jorge em Marighella é mais provocativa do que qualquer porcaria leviana que vemos nesta obra para ativistas alienados e revolucionários de redes sociais.
Outro ponto terrivelmente construído no filme está em sua mitologia, que até tem bons conceitos como os quilombos modernos, mas que não dispõe de qualquer naturalidade ou coesão narrativa, como nas citadas cenas nas ruas, na anticlimática fuga do ato final e nos entornos do apartamento, em que não temos lógica interna mesmo no absurdo ou exploração de situações sugeridas (revolução, movimento, luta), e muito menos sensação de periculosidade, urgência ou suspense na direção estéril de Lázaro. Críticas visuais são inexistentes numa terra em que tudo é explicado da maneira mais trivial possível. Nada é desenvolvido em Medida Provisória, do discurso até o ambiente, dos personagens até a linha narrativa, tudo soa como um panfleto de conscientização para idiotas. Um “artivismo” pobre sem catarse. Um cartaz de protesto de Ensino Fundamental que pode ser muita coisa, menos Cinema, no sentido simbólico-qualitativo do termo.
Medida Provisória – Brasil, 14 de abril de 2022
Direção: Lázaro Ramos
Roteiro: Lázaro Ramos, Lusa Silvestre (adaptação da peça “Namíbia, Não!”, de Aldri Anunciação)
Elenco: Alfred Enoch, Taís Araújo, Seu Jorge, Adriana Esteves, Renata Sorrah, Emicida
Duração: 94 min.