Se é certo que filmes devem funcionar isoladamente, por outro lado é no mínimo interessante ter um olhar mais abrangente e notar como a filmografia de Adirley Queirós vem existindo paralelamente ao desenvolvimento da política brasileira, quase como que uma linha do tempo à parte da História oficial, mas que está paralela a ela, possuindo em alguns momentos pontos de interseção, nos quais a ficção se choca com a realidade. São três grandes símbolos: a vitória de Dilma em 2010 com a aliança PMDB, em A Cidade é uma Só?; o impeachment de Dilma em Era Uma Vez Brasília e a eleição de Bolsonaro em Mato Seco em Chamas.
Grande contador de histórias, Adirley tem uma capacidade incrível de fazer seu espectador se hipnotizar dentro de sua espiral de ficção, através da oralidade e cenografia, sugerindo a existência de um grande universo próprio que existe fora do plano e cuja existência parece atemporal. Contudo, no momento certo, ele dá o seu choque de realidade, inuando a ficção com um elemento do Brasil real. Por isso, é impossível não esquecer do final de A Cidade é uma Só?: após acompanharmos o protagonista (fictício) Dildu por todo o filme em sua campanha para virar vereador, conquistando voto a voto, até que surge uma cena em que ele cruza com uma carreata da Dilma-PMDB e se vê perdido no meio daquela magnitude, enquanto ele é apenas um outsider, escancarando que a democracia no sentido amplo é uma mentira e não há como entrar no sistema sem fazer parte dele e suas concessões. Em sua estreia de longas, este filme pulsava uma energia do movimento, das ruas e vontade de mudança, mas também uma grande raiva com o sistema. Igualmente, em Era Uma Vez Brasília, não há como esquecer da cena do personagem cadeirante em frente ao Planalto, enquanto ecoa, em off, o discurso de Dilma se defendendo do impeachment, com ele permanecendo imóvel enquanto aquele som nos invade como um grito de sufoco. Trata-se de plano síntese de um filme que é todo marcado pelo sentimento de paralisia, asfixia e impossibilidade de seguir em frente, tal como o país estava naquele momento.
Por sua vez, há um grande momento de interseção entre ficção e real em Mato Seco em Chamas, talvez o melhor do cinema de Adirley. Aproximadamente na metade do filme, a história de Léa, Chitara, Andreia e suas aventuras de caubói na Ceilândia é interrompida, sem avisos, para mostrar um longuíssimo plano sequência de uma comemoração da vitória de Bolsonaro nas eleições de 2018, em frente ao Planalto. Aqui, quase como um recuo brechtiano, que acorda o espectador, o real e o presente são trazidos a fórceps para uma narrativa que até então se recusava a se localizar temporalmente pela montagem desnorteante de Cristina Amaral. Se os filmes de Adirley são sempre etnográficos, não há choque maior do que o contraste da interrupção da materialidade das sequências de trabalho e lazer na Ceilândia, imagens irrigadas de suor e histórias das pessoas marginalizadas em Sol Nascente, para revelar aquelas caricaturas bizarras de pessoas que parecem nunca ter passado uma dificuldade na vida, que vivem em seu mundo hermético alheio à Ceilândia. Enquanto a câmera dá o seu longo e lento giro em trezentos e sessenta graus, o espectador é colocado em curto-circuito, como numa grande bad trip.
Dentro desta sequência e sua ideia de movimento circular, há um incrível uso da quebra de expectativa, pois quando já se está completamente desnorteado daquelas imagens marcadas pelo incontável mar de cabeças brancas, ao fim do giro, aparece o corpo negro de um vendedor ambulante no meio da manifestação, presença completamente alienígena naquele contexto, como o único que não parece dopado da euforia demencial de todos ao seu redor. É aí que Mato Seco em Chamas verdadeiramente explode. Desta vez, o efeito do puxão de Adirley para a realidade é mais forte, pois se estamos no meio de um sonho e acordamos dele para descobrir que estamos em pesadelo, talvez seja melhor se forçar de volta para as terras da ficção.
O antagonismo Brasília-Ceilândia e a incomunicabilidade entre estes dois mundos é elemento essencial de Adirley Queirós e neste momento da manifestação bolsonarista em que ele nos arranca de Ceilândia para mostrar o outro lado, é como se este gesto fosse um grande contra-plano de tudo que acontecia até então seu filme. Logo na sequência seguinte, há o que poderia ser chamado de “contraplano do contraplano”. Em um plano geral que mostra a torre do quartel-general de Chitara, vemos uma das personagens de guarda, enquanto bem ao fundo da imagem, a cidade de Brasília começa a explodir em fogos de artifício, celebrando a vitória das eleições de 2018. Genialmente, por meio dessas duas sequências, Adirley faz sua ponte entre Brasília e Ceilândia e a distância dentro deste plano é tão grande, que não restam dúvidas de que há dois Brasil coexistindo.
Enquanto o Brasil “verdadeiro” do documentário acontece do outro lado, a Ceilândia e suas histórias só podem ser preenchidas pela ficção. Partindo do pressuposto que a História é sempre a construção de uma narrativa por um ponto de vista, se entende que há histórias que nem conseguem integrar a História, ocultas a ela. Isso é exatamente a Ceilândia de Adirley Queirós, diretor que encontra em seu cinema o espaço da ficção para explorar corpos e espaços documentais, deslocalizado (espacialmente e temporalmente) para localizar, carregado suas imagens de materialidade, na medida que o gênero e a ficção nunca são elementos dados, mas sempre aludidos, deixados por lacunas, mencionados acidentalmente pelos personagens, subentendidos pela cenografia.
Se afastando da imobilidade de Era Uma Vez Brasília, que buscava preencher o vazio de seus planos com alguma fagulha ou sentido, Mato Seco em Chamas volta, então, a se ocupar de vida, como uma forma de resistência da matéria. O fato de seus planos e as imagens de seus personagens rebeldes perdurarem pelo tempo já é por si só uma espécie de resistência — contra o governo; contra a ditadura da velocidade do cinema contemporâneo — criando um verdadeiro cinema etnográfico que se forma por mosaicos de cenas do dia-a-dia. Cada sequência trabalhada pelos diretores Adirley Queirós e Joana Pimenta são como um universo próprio, em que a direção formalista de planos rígidos apenas se posiciona diante da matéria e deixa uma energia espotânea emanar diretamente da interação dela com a sua extensão no tempo, pelo plano-sequência, cabendo ao espectador fazer o trabalho de ser absorvido pela ficção por meio das matérias reais .
É exatamente este poder de resistência que possui a supracitada cena de uma das personagens no topo da torre, com sua bandeira hasteada e os fogos bolsonaristas ao fundo, pois sentimentos em sua presença, em guarda, que há uma pessoa disposta a lutar contra tudo aquilo. Ou, no mesmo sentido, poderia se dizer isso da grande sequência da candidata Andreia, do Partido do Povo Preso, em sua carreata, em que o tempo vai se acumulando como um resultado de trabalho e esforço pelo seu rosto, que se entrega de corpo e alma, materializando nele uma incrível resistência de alguém que quer verdadeiramente fazer uma mudança, com o seu slogan se repetindo como uma anáfora, cada vez mais forte.
A partir deste amálgama de sequências, a narrativa de Mato Seco em Chamas existe quase que acidentalmente, perdida em um universo, não se desenvolvendo a partir de uma cronologia linear que segue uma história, mas que vai se formando dos efeitos destes acúmulos e choques entre planos dispersos, que juntos fazem um mapeamento etnográfico da Ceilândia. Por isso são tão importantes cenas como as do culto, da festa no ônibus, do show de Muleka “100” Calcinha, do churrasco e assim como todas as sequências estruturalistas que jogam luz nos processos da extração de petróleo com todo seu maquinário e ruídos de ferrugem. Esse é o dia-a-dia daquelas protagonistas e é incrível como se descobre muito de cada uma daquelas personagens sem que elas precisem dizer muito, mas apenas desta observação semi-documental das suas forças de trabalho, relações com o Divino, com as paixões mundanas e conversas trocadas ao vento. A narração do filme, portanto, é a narração de seu mundo e a expansão das trajetórias de suas personagens através do universo no qual elas estão inseridas.
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Mato Seco em Chamas é provavelmente, para mim, o melhor filme brasileiro dos últimos anos e certamente não se esgota dentro deste texto, feito frustradamente no contexto apressado de um festival de cinema, mas pelo menos se espera que essa pequena tentativa de introdução a toda a magnitude do filme possa servir como ponto de partida para uma expansão futura, para falar de muitos dos pontos que aqui não foram abordados (e que foram deixados de lado em prol de um recorte limitado, mas coeso, sem atirar em todas as direções), com a calma e possibilidade de reflexão que ele merece.
Mato Seco em Chamas (2022) — Brasil, Portugal
Direção: Adirley Queirós, Joana Pimenta
Roteiro: Adirley Queirós, Joana Pimenta
Elenco: Joana Darc Furtado, Léa Alves da Silva, Andreia Vieira, Débora Alencar, Gleide Firmino
Duração: 153 mins.