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Crítica | Matéria Escura (2024) – 1ª Temporada

As escolhas que nos definem.

por Ritter Fan
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O Apple TV+ é um serviço de streaming que, curiosamente, mas talvez em razão da quantidade de outros serviços com bem mais conteúdo, não conseguiu ainda se tornar amplamente utilizado e/ou conhecido. É bem verdade que o foco tem sido quase que unicamente em produções próprias, o que reduz o número de obras ofertadas, mas é visível a qualidade crescente do material disponibilizado, algo que fica ainda mais evidente na ficção científica, que tem ganhado espaço cada vez maior na grade. A mais recente obra do gênero é Matéria Escura, série criada e desenvolvida por Blake Crouch, que também escreveu o livro homônimo em que ela é baseada, além de boa parte dos roteiros, e que lida com um assunto que, se antes era usado aqui e ali em obras como Fringe, tornou-se um tropo tão popular quanto viagem no tempo, ou seja, as realidades alternativas ou, usando a expressão da moda, o multiverso.

Chega a ser curioso que Matéria Escura tenha tido estreia quase simultânea a Constelação (pouco mais de um mês depois do fim), série tematicamente muito próxima, mas que, infelizmente, já foi cancelada. Seja como for, a criação de Crouch começa com aquele verniz científico “para inglês ver”, ou seja, pincela lá a conhecida experiência mental do Gato de Schrödinger como forma de ilustrar a mecânica quântica e a aparente incongruência que é ter o referido felino morto e vivo ao mesmo tempo dentro de uma caixa, em uma sobreposição quântica, para, então, lidar com a literal materialização da caixa, inventada por Jason Dessen (Joel Edgerton e doravante denominado Jason 2) em um universo paralelo que chega ao mundo do Jason principal – Jason Prime? – vivido pelo mesmo ator, claro, e troca de lugar com ele à força. Com isso, a premissa básica é estabelecida: Jason 2 passa a usurpar a vida de Jason, vivendo com sua esposa Daniela (Jennifer Connelly) e seu filho Charlie (Oakes Fegley) enquanto Jason precisa desesperadamente entender o que está acontecendo no universo de Jason 2 para voltar para casa. Em muitos aspectos, a premissa de Matéria Escura lembra a da também finada Counterpart, mas sem todo o lado de espionagem da série estrelada por J.K. Simmons.

Toda a ciência da série é representada na literalidade, seja a caixa em si, seja o corredor infinito com um número infinito de portas dos dois lados que leva a infinitos universos alternativos, e eu encaro isso como uma maneira que Crouch encontrou para justamente não mergulhar no detalhamento do que está acontecendo, já que seu objetivo é muito menos lidar com esses aspectos científicos e muito mais com vidas não vividas, com escolhas que fazemos todos os dias que nos levam a caminhos que, às vezes, não têm volta. Jason vive uma vida pacata de professor, com uma linda esposa e um filho saudável em um casa quase embaixo do elevado ferroviário de Chicago, enquanto Jason 2, por uma escolha que ele, agora, em retrospecto, considera equivocado, perdeu essa chance com Daniela para focar no trabalho que leva à descoberta da “passagem” multiversal. Jason, por seu turno, tem seu chão arrancado violenta e instantaneamente sob seus pés e, fazendo aliança com Amanda Lucas (Alice Braga), namorada de Jason 2 em um mundo em que Daniela é uma artista plástica famosa, tenta entender, na base da tentativa e erro, como a caixa funciona.

No entanto, para que essa troca tenha peso dramático no que se refere ao Jason principal, os roteiros de Crouch e equipe não têm pressa em fazer o protagonista viajar pelo multiverso. Muito ao contrário, tudo começa lentamente, como um drama comum que sedimenta a relação de Jason com sua família e com suas escolhas do passado e, mesmo quando Jason 2 o sequestra e o arremessa para o seu mundo, tudo continua andando vagarosamente de maneira que, então, a presença de Amanda também tenha relevância. Até mesmo quando Jason e Amanda passam a pular de universo em universo, a pegada da série é discreta, econômica, realmente muito mais preocupada em estabelecer uma nova conexão – Jason saudoso por sua família e Amanda vendo uma versão mais humana do amor de sua vida tão perto de si, mas ao mesmo tempo tão longe – do que gastar o orçamento com variações de Chicago. Há uma única exceção, que é explorada no sétimo episódio da série, mas há uma razão boa e lógica para isso, até porque se trata de um capítulo determinante na narrativa geral.

Portanto, é importante que o espectador puxe as rédeas da expectativa, especialmente considerando o quanto a expressão “multiverso” quase que automaticamente nos faz pensar em produções milionárias povoada por super-heróis espalhafatosos. Matéria Escura é um drama que tem o multiverso como pano de fundo e não multiverso com pano de fundo dramático, se é que me entendem. E é por isso que é tão importante estabelecer os Jasons – o primeiro de maneira mais natural e, o segundo, com uma abordagem reversa, já partindo de nossos preconceitos considerando o que ele faz logo no início – e é por isso que a escolha de Joel Edgerton para viver os personagens me surpreendeu muito. Em minha cabeça, ele era um bom ator, mas nada especial. Depois do que vi, percebo que ele é bem mais do que um bom ator, e sim alguém capaz de nuanças na navegação entre as duas versões de um mesmo personagem. Há um cuidado grande da produção em deixar pistas visuais suficientes para o espectador saber quem é quem, mas esse é um preciosismo que, em minha visão, subestima o espectador diante da qualidade dos trabalhos dramáticos de Edgerton. É impressionante como seu Jason 2 exala não vilania, mas arrependimento pela vida não vivida e seu Jason Prime transparece inocência misturada com desespero pela vida que lhe foi roubada. Outro destaque é Alice Braga e sua Amanda, uma mulher que parece ter o véu retirado de seus olhos no que se refere ao namorado, no mesmo momento em que descobre uma versão ideal dele.

O que eu desgosto profundamente é a direção de fotografia da série divida entre John Lindley e Jeffrey Greeley. Certamente sob mandamento de Crouch, a pegada é sombria, o que faz sentido nos dois mundos principais e em relação aos dramas dos Jasons, ainda que por razões diferentes, mas uma coisa é uma série sombria, outra bem diferente é uma série simplesmente escura. E Crouch parece ter levado o título de sua obra um pouco a sério demais, pois Matéria Escura é literalmente escura o tempo todo, irritantemente escura, seja dentro da caixa interdimensional, seja em qualquer situação em qualquer mundo visitado, com uma solitária e já citada exceção. Os cenários são pesados, notadamente o interior da casa da família Dessen, os figurinos são variações de cinza, preto e marrom e a paleta de cores acompanha esse padrão, com uma quantidade grande de sequências filmadas à noite ou em ambientes sem luz ou mal iluminados, tirando muito da vitalidade da série e, por vezes, até mesmo da compreensão do que afinal está acontecendo.

Em sua primeira temporada, Matéria Escura vai devagar e sempre em seu foco muito mais no lado “ficção” do que no lado “científica” do gênero em que se insere, ainda que a inserção de uma reviravolta no minuto final do sétimo episódio que, então, serve de gatilho para o que podemos chamar de ação ininterrupta ao longo dos dois episódios seguintes, tente equilibrar mais os dois lados e, na mesma toada, impedir que a história acabasse aqui mesmo, transformando a obra em uma série efetiva, com direito a um final bem aberto. Claro que eu preferiria que tudo tivesse sido encerrado por aqui mesmo, talvez com o uso de mais um episódio para chegar a 10 (sempre bom para o T.O.C.) e dar espaço para finalizações, mas creio que exista material suficiente para que a série continue por mais um tempo desde que Blake Crouch não se perca em invencionices multiversais e continue focando nos dramas humanos. E seria bom se ele também ligasse as luzes do sets

Matéria Escura – 1ª Temporada (Dark Matter – EUA, 08 de maio a 26 de junho de 2024)
Desenvolvimento e showrunner: Blake Crouch (baseado em romance dele mesmo)
Direção: Jakob Verbruggen, Celine Held, Logan George, Roxann Dawson, Alik Sakharov
Roteiro: Blake Crouch, Megan McDonnell, Jacquelyn Ben-Zekry, Ihuoma Ofordire
Elenco: Joel Edgerton, Jennifer Connelly, Alice Braga, Oakes Fegley, Jimmi Simpson, Dayo Okeniyi, Amanda Brugel, Aina Brei-Yon, William Smillie
Duração: 472 min. (nove episódios)

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