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Crítica | Matadouro Cinco (graphic novel)

por Ritter Fan
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Só na Terra há qualquer conversa sobre live arbítrio.
– Tralfamadoriano.

Adaptar Matadouro Cinco, libelo anti-belicista e semi-autobiográfico que Kurt Vonnegut publicou em 1969, não é uma tarefa fácil. O texto é rico, não-linear e carregado de um tom irônico e ferino que machuca na mesma proporção que entretém ao tratar profundamente de temas como trauma, loucura, morte e, claro, a insanidade da guerra, tudo dentro de uma estrutura sci-fi em que o protagonista, Billy Pilgrim, claramente uma persona de Vonnegut, é apresentado com um homem “descolado no tempo”, ou seja, que é capaz de vivenciar várias épocas de sua vida ao mesmo tempo, seja no passado, presente ou futuro e que, de quebra, é levado pelos tralfamadorianos para seu planeta de forma a ser observado como um animal em um zoológico.

Em outras palavras, trata-se de uma obra fascinante e dolorosa que trata a banalidade da morte com a famosa frase so it goes que já foi traduzida para o português de diversas maneiras, como “coisas da vida” ou “é assim mesmo”. A adaptação em quadrinhos de Ryan North é uma surpresa completa não só pela coragem por ele dispor-se a fazer a transposição de mídia, como também – e principalmente – por ele ser tão bem sucedido. O roteirista bebe diretamente do texto de Vonnegut, mas sabendo usar todos os instrumentos inerentes da Nona Arte para criar uma versão que, arrisco dizer, não deixa nada a dever à original.

Assim como no romance, a graphic novel relata a vida de Billy Pilgrim em diversos momentos temporais diferentes, tendo o terrível bombardeio da cidade de Dresden ao final da Segunda Guerra Mundial como ponto de convergência. Há o Billy soldado, o Billy criança, o Billy internado em hospital psiquiátrico, o Billy sobrevivente de uma acidente de avião, o Billy animal de zoólogico alienígena, o Billy aprendendo a nadar, o Billy adúltero, o Billy optometrista rico e, claro, o Billy amigo do autor-não autor Kilgore Trout. Todos esses Billys formam o Billy traumatizado que acompanhamos não-linearmente, mas com um enorme esforço de North de estabelecer uma cronologia lógica que ele mesmo faz o favor de estilhaçar mais adiante juntamente com os escombros de Dresden. Billy – e até Vonnegut, já que ele é direta, mas discretamente inserido na narrativa em um artifício que substitui as mudanças de pronome na obra original – é o observador passivo dos horrores da humanidade e alguém que passa a compreender o tempo e, portanto, a morte, como os tralfamadorianos, ou seja, da mesma forma que nós, humanos, observamos uma cordilheira (algo que certamente inspirou o conto que, por sua vez, deu origem ao longa A Chegada), eliminando, com isso, o tão querido e defendido livre-arbítrio.

Se o texto ganha uma esplêndida e relevante adaptação por North, talvez o destaque ainda maior da HQ seja a arte de Albert Monteys que é o verdadeiro responsável por realmente abraçar toda a maleabilidade da mídia. É ele que manipula as páginas e os quadros para obter os melhores efeitos possíveis de passagem de tempo e das tão caras e importantes alterações temporais, indo para frente e para trás e para fora da Terra sem em nenhum momento quebrar a fluidez da leitura, trabalhando magnificamente o silêncio e a repetição de quadros com apenas pequenas alterações, seja em detalhes como movimentos de rosto, seja na cor ou outros elementos.

Além disso, Monteys altera o estilo para contar as histórias dentro da história que são expandidas por North a partir do que Vonnegut menciona em sua obra. Com isso, não só temos gráficos de cronologias, como também story boards e páginas no estilo de “quadrinhos antigos”, mas nunca de maneira artificial ou desinteressante. Ao contrário, cada mudança é bem inserida e lógica dentro do que a graphic novel pretende mostrar, amplificando a sensação de “desconexão” com a própria realidade que o protagonista sente, além do horror da guerra que é, sem dúvida alguma, o pano de fundo para essa fascinante e inesquecível história.

Não esperava que uma versão em quadrinhos de Matadouro Cinco pudesse capturar com esse nível de cuidado e detalhe cada comentário crítico que Vonnegut faz com sarcasmo e ironia em sua seminal obra. Tenho certeza de que não só Vonnegut, como também Trout e, claro, os tralfamadorianos aprovariam – já aprovaram/aprovarão – essa belíssima versão que, porém, só deveria ser lida depois do aproveitamento da obra original.

Matadouro Cinco (Slaughter-House Five or The Children’s Crusade: a Duty-Dance with Death, EUA – 2020)
Roteiro: Ryan North (baseado em romance de Kurt Vonnegut)
Arte: Albert Monteys
Cores: Albert Monteys, Ricard Zaplana
Letras: Albert Monteys
Capa: Scott Newman, Albert Monteys
Editoria: Gwen Waller, Allyson Gronowitz, Sierra Hahn
Editora: Archaia
Data original de publicação: 16 de setembro de 2020
Páginas: 192

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