Em Mata-Mata, como o próprio título sugere, temos uma história violenta. Ambientada no Ceará, mais especificamente no cenário interiorano de Jaguatinga e no auge da era da pistolagem dos anos 80 e 90, a narrativa acompanha majoritariamente a trágica jornada de uma família dominada pela selvageria do seu contexto, não só por conta das armas, mas também das injustiças sociais e dos interesses políticos. Em síntese, o autor Zé Wellington tece uma trama que perpassa várias décadas em torno de um grupo de irmãos que foram criados para serem matadores, com destaque especial para o primogênito, Ademir, que em sua mocidade tinha aversão ao trabalho sangrento, e o caçula, Valdemir, que parece ter “nascido para essa vida”, apesar do mesmo ser mais um fruto do ambiente em que cresceu.
Logo de cara, o que chama atenção na leitura é a qualidade de Zé Wellington em nos transportar para o sertão cearense e para o ambiente duro que esses personagens vivem. Não só nas ótimas descrições de cenários, com grande nível de detalhe e de conhecimento local, mas também nos diálogos e no subtexto da narrativa, o autor desenvolve um universo rico de elementos históricos, sociais e culturais. Talvez o elemento de melhor destaque esteja na diferença de classes e na exploração política, com situações infelizmente corriqueiras sendo representadas na obra, como o domínio geracional de uma família sobre a política da cidade; o ciclo vicioso de violência entre os marginalizados sem acesso à educação (em especial, um recorte da história sobre os dois irmãos mais velhos querendo estudar é comovente); e, de maneira geral, o sofrimento generalizado da classe trabalhadora entre lampejos de felicidade.
O autor também faz um ensaio de outros temas, como o papel da mulher nesse tipo de ambiente conservador (mais especificamente com a subtrama da filha de Ademir, chamada Délia) e certas mudanças com a chegada da contemporaneidade, na segunda metade do livro, quando acompanhamos a trajetória de Ricardo, um assistente social que personifica certos tons de denunciação e de idealismo do texto (aqui, Wellington se permite ser um pouco mais crítico). É, porém, no prólogo sangrento que Mata-Mata realmente brilha. Para além de uma evidenciação de mazelas sociais, a obra tem um cenário inspirado em faroestes que é uma gostosura de leitura: uma família de pistoleiros manipulada a protagonizar um evento de violência que resgata temas sobre vingança e ressentimento que encorpam o drama e a ótima caracterização dos personagens principais, chegando a um clímax que nos apresenta um acerto de contas do passado.
Outro ponto de destaque está na criativa construção de linguagem da obra. A escrita de Wellington transita entre a prosa e o cordel para enriquecer a narrativa, em alguns momentos chaves do livro que trazem um aspecto de lenda local e de algo folclórico em torno da saga de várias décadas da família Tainha – aqui, Wellington esbanja simbolismos e metáforas muito boas. O autor não para aí, intercalando sua escrita com ilustrações de quadrinhos de Rafael Dantas, trilha sonora e até um podcast com Ademir, que agregam demais para o senso de atmosfera e de imersão nesse universo. É um esforço multimídia recompensador para o leitor, que sente, ouve e visualiza o espaço do livro e se envolve com a trama, tanto em seus momentos de ação, suspense, emoção, denunciação, ternura e, principalmente, de sofrimento; Wellington em nenhum momento nega que estamos vendo uma tragédia, mesmo que com toques de esperança aqui e ali, com destaque especial para a libertação de Délia na sequência final da obra.
Se tenho uma crítica à obra, é a sensação de que o livro poderia ser maior. Sinto a falta de um aprofundamento em alguns cenários e trechos da história, como na curta subtrama de Délia ou na subutilização da família Mouta, que domina o cenário político local, mas que é mais um antagonista por si só do que efetivamente um recorte melhor desenvolvido na obra, bem como em alguns personagens que acredito não terem sido totalmente extraídos dentro da história, como Aurélia (o interesse romântico do protagonista e a mãe de Délia) que pouco aparece ou até os diversos irmãos Tainha, que, com exceção de Ademir e Valdemir, são mais figurantes dentro da saga. De qualquer forma, talvez essa crítica seja uma espécie de elogio, já que o leitor fica com aquele gostinho de quero mais, de conhecer mais desse universo e desses personagens, o que pode até ter sido a intenção do enredo enxuto de Zé Wellington, que, ironicamente, escreveu aqui uma versão estendida.
Mata-Mata se inspira em diversos elementos literários e históricos de evidenciação do sofrimento, da luta e, claro, da beleza do sertão nordestino, mas trazendo sua própria personalidade. O livro mergulha no regionalismo para nos oferecer uma jornada pelo tempo, pela cultura e por personagens que personificam tantos contextos e situações do cenário dessa história, mas também nos oferecendo aquele toque de uma leitura divertida de ação e de vingança, com uma trama relativamente simples e eficiente pela incrivelmente carismática e complicada família Tainha. Mais do que crítico, Zé Wellington parece querer ser representativo, o que substitui o nem sempre interessante didatismo militante por uma leitura criativa, especialmente em seus usos de linguagem, que instiga, que emociona, que denuncia e que traz uma tremenda imersão dentro desse universo tão rico e tão cheio de dor.
Mata-Mata (Versão Estendida) | Brasil, 2022
Autor: Zé Wellington
Ilustrações: Rafael Dantas
Editora: Draco
96 páginas