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Crítica | Mary Shelley (2017)

Cinebiografia da escritora britânica apresenta um desenvolvimento delicado e nos apresenta à jornada de concepção do clássico Frankenstein.

por Leonardo Campos
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Mary Shelley. Ela viveu tantas coisas, experimentou situações inusitadas desde bem jovem, foi esposa de um homem imaturo, teve pais revolucionários politicamente, mas o que lembramos imediatamente diante da menção do seu nome é o romance Frankenstein, publicado em 1818, mas depois reeditado com prefácios e textos complementares, haja vista a recepção do público e da crítica de sua época, todos num misto de fascínio e horror, repulsa e atração. Essas e outras questões são temas da cinebiografia Mary Shelley, uma narrativa de 120 minutos, lançada em 2017, dirigida por Haifaa Al-Mansour, cineasta em entregou algumas linhas de diálogos adicionais para o roteiro assinado por Emma Jensen. Ellen Fanning interpreta a escritora britânica com muita firmeza, mas bastante sutileza, numa jornada que toca nos principais pontos da trajetória da criadora de um dos mais emblemáticos romances do século XIX. A ausência de sua mãe, a relação conflituosa com a madrasta, o contato afetuoso, mas complicado com o pai, o desenvolvimento da paixão por Percy Shelley, suas aventuras literárias e geográficas ao conhecer zonas diferentes da qual estava habituada, além da escrita de Frankenstein. Do ato de criação, a pavimentação da caminhada entre a rejeição e a aceitação posterior do seu livro.

Delicada como aparentemente foi Mary Shelley em vida, a sua cinebiografia é visualmente cuidadosa e desvinculada de grandes arroubos dramáticos. É tudo muito contido no quesito protagonismo. A exceção vai para o desenho de Lord Byron como personagem, uma figura social da época que deixou poemas belíssimos, mas supostamente era um babaca e canalha em demasia. A atuação de Tom Sturridge faz questões de reforçar esse aspecto. Paki Smith, no design de produção, ergue com destreza os espaços por onde os personagens atravessam em suas histórias, a maioria delas, trágicas. Há uma cuidadosa contextualização arquitetônica na cenografia, nos figurinos e na direção de arte. É um setor que ganha maior projeção com a iluminação e as escolhas de movimentação e ângulos oriundos da direção de fotografia, assinada por David Ungaro. As lentes, por meio da concepção de imagens poéticas, captam o que é tensão e o que contemplação, num bonito exercício estético de linguagem cinematográfica. Amelia Warner nos entrega uma textura percussiva amena, sutil, um trabalho que apresenta beleza, mas sendo sincero, não chega a se tornar memorável.

Essa cinebiografia toca em diversos pontos importantes. A questão feminina, pois as mulheres na época não podiam se posicionar com alguns dos privilégios adquiridos na atualidade. Há uma contextualização interessante de época, com modos e costumes radiografados, numa observação devidamente delineada da pobreza e da riqueza, dos jovens poetas idealistas diante da elite literária, mas o olhar de quem vos escreve se deteve numa porcentagem maior para dois aspectos: a importância do repertório cultural, em especial, o de leitura, para que a escritora conseguisse compor Frankenstein, e, consequentemente, o que teria de biográfico na tessitura do romance em questão. Numa época sem redes sociais e aplicativos que nos dispersam, Mary Shelley, privilegiada por ser letrada, se nutria das coisas que acompanhavam na vida social de seu pai, além de ser constantemente contemplada em leitura. São cenas que me remeteram ao que T. S. Eliot disse certa vez: “ninguém escreve sozinho, ao escrever, aciona todo um acervo”.

Considerado um dos poetas mais influentes do século XX, T. S. Eliot formulou a ideia de que “ninguém escreve sozinho”, sublinhando a importância da tradição e da intertextualidade no ato criativo. Para entender essa afirmação, é fundamental explorar como as obras literárias não existem no vácuo, mas são frutos de um diálogo contínuo entre autores, gêneros e contextos históricos. Primeiramente, a escrita é um processo que se alimenta de experiências, culturas e referências acumuladas ao longo do tempo. Cada autor traz consigo um “acervo” de leituras e influências que moldam sua voz e estilo. No caso de Mary Shelley, isso é evidente em Frankenstein, narrativa que frequentemente dialoga com poetas e escritores da tradição, como por exemplo, John Milton e seu épico Paraíso Perdido, um livro basilar para o entendimento das questões filosóficas presentes na saga do monstro e de seu criador irresponsável.

Ao referenciar suas fontes, Mary Shelley não apenas presta homenagem aos seus pontos de referência, mas também insere sua produção em um contexto mais amplo, onde a literatura se torna uma construção coletiva. A intertextualidade é uma característica marcante da literatura moderna, onde os textos se referenciam mutuamente. Essa prática reafirma a noção de que o ato de escrever é sempre uma resposta a um conjunto de obras anteriores. Em Frankenstein, a obra-prima de Shelley, ela demonstra seu conhecimento não apenas sobre a poesia de Milton, mas sobre mitologias diversas, em especial, a saga de Prometeu, jornada grega que nomeia o romance, afinal, citamos Frankenstein, mas o livro em si é completado com “ou o Prometeu Moderno”. Por sua pouca maturidade, o livro não deixa de ter algumas pontas soltas, citações que soam aleatórias, mais eruditas que necessariamente fundamentais para o avanço narrativo, mas a base do enredo e seus desdobramentos ainda relevantes em nossa contemporaneidade, dominada por evoluções tecnológicas, pesquisas sem ética transparente, dentre outras celeumas, tópicos que tornam a história absurdamente atual ainda em 2024.

E, de volta ao que trouxe sobre T. S. Eliot, além das referências literárias, a afirmação do poeta também se estende às influências culturais e sociais que informam a escrita. E isso nós podemos observar em Mary Shelley, uma cinebiografia amena, sem grandes rompantes, dominada por uma tranquilidade curiosa, mas que não cai em momento algum na monotonia. Cada autor é um produto de sua época, imerso em questões políticas, sociais e filosóficas que moldam seu pensamento e criação. A partir dessa perspectiva, a literatura torna-se um reflexo das preocupações coletivas de uma sociedade e, ao mesmo tempo, uma ferramenta de resistência e crítica. A escritora britânica, envolta na teia de mudanças com o advento cada vez mais inovador da modernidade, em quesitos positivos e negativos, gravitava em torno de transformações que traziam fortes sentimentos de incerteza para a sociedade, recém-impactada pela Revolução Francesa e seus pensamentos racionalistas, por exemplo. Muita coisa para Shelley emular.

Ademais, devemos considerar o papel dos leitores na prática da escrita. A interação entre o autor e sua audiência também é parte dessa ideia de que “não se escreve sozinho”. O leitor, ao se deparar com a obra, interpreta, critica e eventualmente se inspira, criando um ciclo de continuidade que alimenta novas criações literárias. A literatura, portanto, se transforma em um espaço compartilhado onde diversas vozes se entrelaçam. Isso nos faz refletir sobre a complexidade da prática literária, revelando que cada obra é construída sobre um vasto acervo de influências e diálogos. Inicialmente tímido, o romance Frankenstein foi ganhando reconhecimento com seus leitores, depois tradutores, com maior interesse ao passo que o teatro começou a encenar o seu enredo nos palcos. Foram os primeiros passos de transições semióticas, algo que ganhou maior fortalecimento, e, consequentemente, algumas distorções e facilitações, com as versões cinematográficas do século XX.

E sobre o segundo ponto, em seus 120 minutos, Mary Shelley não consegue aprofundar em todos os pontos que podem ter servido de ponto de articulação biográfica para a composição de Frankenstein, mas deixa claro para o espectador que os realizadores conhecem todos eles. A vida de Mary Shelley foi marcada por traumas e perdas que certamente impactaram sua escrita. Nascida em 1797, filha de duas figuras proeminentes no movimento feminista e literário, Mary Wollstonecraft e William Godwin, ela cresceu em um ambiente intelectual vibrante. No entanto, sua infância foi marcada pela morte prematura de sua mãe, que morreu logo após seu nascimento, um evento que a deixou com uma sensação de abandono que reverberaria em suas obras. Essa relação conturbada com a figura maternal pode ser vista refletida na relação entre Victor Frankenstein e a criatura, onde temas de rejeição e busca por aceitação são proeminentes. Além disso, a juventude de Mary também foi composta por paixões intensas e tumultuosas: a junção com o já mencionado poeta Percy B. Shelley é o destaque na cinebiografia.

A instabilidade emocional que cercava sua vida amorosa, marcada por perdas e traições, pode ter ganhado ressonâncias na forma como ela abordou temas de criação e destruição em Frankenstein. A morte de seus filhos, por exemplo, deixou cicatrizes profundas, aquilo que chamamos de luto e trauma, algo que pode ter contribuído para a representação do dilema do criador e da responsabilidade que acompanha a criação. Victor Frankenstein, ao gerar a criatura, ignora as consequências de sua ambição, um reflexo da luta de Shelley entre a aspiração e o desespero. Junto a isso, mesmo que de maneira bastante discreta, Mary Shelley é um filme que nos mostra que a escritora foi uma observadora atenta das transformações sociais e científicas de sua época. O início do século XIX foi um período de grande avanço tecnológico e científico, com o surgimento de ideias que desafiavam as concepções tradicionais sobre a vida e a criação.

Temos o debate sobre galvanismo, que aqui, poderia ter sido aproveitado pelo roteiro com maior proeminência, um tema que despertou a curiosidade de Shelley sobre o poder da ciência de criar vida, afinal, Frankenstein não é apenas uma narrativa de horror, mas também uma reflexão sobre a responsabilidade ética que a ciência carrega, uma preocupação pertinente à época e ainda relevante nos dias de hoje. As influências de sua biografia se entrelaçam com os temas da ambição, da solidão e da busca pelo sentido da vida. A criatura, assim como Shelley, busca um propósito e um lugar no mundo, enfrentando o preconceito e a rejeição. Esse eco biográfico reflete não apenas a experiência pessoal de Shelley, mas também as lutas coletivas da sociedade em busca de identidade e aceitação. Mesmo que Frankenstein seja o ponto nevrálgico de sua jornada, os realizadores preferiram deixar esse lado genético em menor evidência, uma escolha também interessante, para nos mostrar, por meio da representação cinematográfica, quem foi o ser humano por detrás desse clássico da literatura.

Mary Shelley (EUA, Luxemburgo, Reino Unido e Irlanda do Norte – 2017)
Direção: Haifaa Al-Mansour
Roteiro: Emma Jensen
Elenco:  Elle Fanning, Bel Powley, Owen Richards, Joanne Froggatt, Stephen Dillane, Andy McKell, Maisie Williams, Derek Riddell, Hugh O’Conor, Bill O’Brien, Douglas Booth, Martin Phillips, Ciara Charteris
Duração: 120 min.

 

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