O presente arco começa na metade da edição #4 de Martin Mystère, apresentando uma história intitulada Horror em Providence. Nela, o roteirista Alfredo Castelli começa narrando fatos ligados à teletransportação, apresentando uma porção de depoimentos sobre esses eventos absurdos através da História, dentre eles, o caso de Alice Hilton, em 1905; o caso de um certo Doutor que foi teletransportado pelas fadas (ah, a mania de fadas no século XIX!); e principalmente o caso de Gil Perez, um soldado espanhol comum, membro da Guardia Civil filipina e que trabalhava como guarda no palácio do Governador Geral, em Manila. Em 1593, esse homem foi teletransportado para a Plaza Major, na cidade Cidade do México, e até hoje esta é uma das narrativas históricas mais absurdas e sem explicação.
Essa exposição dos casos acaba sendo uma bem inserida indicação metalinguística na trama, pois é a leitura do Inspetor de polícia de Nova York sobre um trecho do livro escrito por Mystère, o Atlas do Desconhecido. E desse momento em diante é que ficamos sabendo o motivo do contato. A polícia pede ajuda ao Detetive do Impossível para resolver um misterioso caso de teletransporte ocorrido por aqueles dias: depois de cometer um assassinato numa casa de Providence, um homem acabou aparecendo de maneira inexplicável na Estação Grand Central, em Nova York (em uma das páginas na estação vemos a propaganda de um faroeste fictício: The John Waine Story — para quem for procurar, está na página 73 da edição #4, logo abaixo do relógio. Onde está escrito Newsweek, vemos no letreiro eletrônico, em pontilhado, o título do referido filme, completado por “starring Ronald Reagan as the Duke“).
Alfredo Castelli faz mais uma vez a ligação entre situações absurdas e a realidade, dessa vez buscando inspiração nos escritos de H. P. Lovecraft. Providente é a cidade natal do famoso escritor, e é nela que estão o núcleo-resposta para o mistério levantado na trama. O lado puramente convencional do enredo está no fato de haver um assassino em cena — um homem que invadiu uma casa que não deveria, matou um homem que não deveria e entrou por uma porta que jamais deveria entrar — e a nada ilustre presença de Diana Lombard, a insuportável namoradinha de Martin Mystère, que dessa vez choraminga o fato de o Detetive do Impossível ter desmarcado uma viagem para “ter aquela conversa“. Sinceramente, toda a parte em que ela aparece me faz torcer o nariz e me afasta um pouco da história. E mais irritante ainda é que o roteiro tenta colocar, aqui, uma tag de independência nela, com citações ao feminismo e tudo, mas isso a torna ainda mais irritante, porque a praxis da personagem simplesmente não combina com o seu discurso.
Já o lado sobrenatural bebe muito mais no “mistério policial” do que em sua própria seara. O autor não procura teorizar a respeito do teletransporte ou das questões sobrenaturais envolvendo o Universo de Lovecraft, mas utiliza esse tipo de situação como uma das etapas da investigação. Como consultor da polícia, Mystère precisa lidar com os fatos, observar as provas e tentar entender como algo “fora da normalidade” se encaixa nessa dinâmica. O texto consegue algo bom com isso, mas não se alça muito alto com o material. Como disse mais acima, não existe um trabalho teórico, expansivo em cima do sobrenatural. Assim, toda a ação é um jogo de tentativa de Martin para encontrar respostas e sofrendo isoladamente as consequências de ter cruzado linhas que não deveria. Apenas no final da história, quando ele, Java e a namoradinha insuportável entram pela “porta proibida” é que o tom do roteiro sobe e algo mais refinado quanto as essas questões aparece nas páginas.
Das duas edições, A Casa nos Confins do Mundo é a que mais nos faz pensar sobre a questão apresentada no arco. Primeiro, porque destaca a casa, e existe uma quantidade assustadora de simbolismos relacionados às habitações. Partindo desse princípio, podemos até encontrar novas interpretações para a presença dos portais, ao redor do mundo, que podem transportar uma pessoa de um lugar para outro. E também o fato de um tipo específico de arquitetura ter a capacidade de dar abrigo a seres que não são deste mundo. Acredito que o autor conseguiria um trabalho bem mais interessante se retirasse de cena o lado romântico, a personagem Diana, e o lado da história que indica um grupo por trás de tudo isso, mas que não tem espaço algum para mostrar algo chamativo. Sim, existe um personagem que dá as caras e diz fazer parte dessa irmandade, mas é tudo tão solto e superficial que não faz diferença para a história. Castelli conclui sua narrativa fazendo ecoar a desconfiança desses “abrigos” para criaturas e forças que não compreendemos. E mantém na série a atmosfera de que tudo é possível. Mesmo aquilo que a gente acha que é só literatura de horror cósmico.
Martin Mystère – Vols. 4 e 5: Horror em Providence e A Casa nos Confins do Mundo (Orrore a Providence / La Casa ai Confini del Mondo) — Itália, julho e agosto de 1982
Roteiro: Alfredo Castelli
Arte: Angelo Maria Ricci
Capa: Giancarlo Alessandrini
No Brasil: Grandes Enigmas de Martin Mystère – Detetive do Impossível #5 e 6 (Globo, 1987)
135 páginas