A única coisa que pesa, em termos negativos, neste telefilme de R.W. Fassbinder, é, ironicamente, o ingrediente básico de seu próprio estilo, aqui diluído em nuances de Douglas Sirk e Luis Buñuel: o teatro. Martha carrega grande peso em sua teatralização de estilo anti-naturalista, mas estaria melhor servido se Fassbinder tivesse adotado uma outra abordagem, algo mais parecido com o que ele fizera em seu longa anterior, O Medo Consome a Alma, que também guarda características teatrais, mas com menor intensidade.
Baseado no conto For the Rest of Her Life, de Cornell Woolrich, Martha pode ser lido como a luta perdida da mulher contra a dominação masculina — tema que teve desdobramentos bem diferentes em A Liberdade de Bremer, 1972 –; ou como uma alegoria de Fassbinder para a Alemanha nazista, que dominava a população ideologicamente e se impunha totalitariamente através do medo ou da força física. Esta é a relação entre Martha (Margit Carstensen, em uma soberba interpretação) e seu esposo Helmut (Karlheinz Böhm, brilhante e assustador no papel).
O roteiro de Fassbinder é muitíssimo eficiente ao elencar símbolos que serviriam de expansão dramática no decorrer da história. Como se trata de um longa da fase final de seus melodramas distanciados (e quando digo “fase final” me refiro à força de abordagem, que começa a apresentar mudanças para além do melodrama a partir de O Direito do Mais Forte à Liberdade, 1975), podemos dizer que Martha é um dos filmes-chave de sua carreira. Nele, temos os grandes problemas de identidade, as relações amorosas e familiares doentias, um espelho da sociedade da época e o já citado caráter histórico da Alemanha nazista (ou, se preferirmos, da Alemanha pós-nazista que ainda agia como se estivesse no passado, tal como em O Desespero de Veronika Voss, 1982).
Martha, a personagem-título, é a representação da persona oprimida em todos os sentidos. No início do filme ela tem a forte figura do pai, de quem “se livra” em uma belíssima cena em uma escadaria e após a morte do qual ela começa a fumar. Um dos grilhões que a prendia estava quebrado. Mas Fassbinder orquestra a mais inteligente forma de apresentar uma nova prisão. Ao dar o endereço de sua casa para o funcionário da Embaixada, Martha também nos dá a senha para o futuro: Rua Douglas Sirk.
O ponto melodramático sirkiano é realmente melhor delineado a partir daí (logo depois que volta para o hotel, Martha vê Helmut pela primeira vez e o grande movimento circular de câmera que se segue [alguns dizem que é de 720º, outros, de 360º] é um dos mais lindos e engenhosos do cinema) e temos então uma história que se constrói também com doses de horror, humor negro, crítica religiosa e sadismo, sendo esses dois últimos os elementos buñuelistas da fita, com destaque para Martha completamente queimada pelo sol sendo praticamente estuprada por Helmut; a morte do gato preto na porta do quarto do casal; a denominação da música de Donizetti — Lucia di Lammermoor — como “lixo” e a exaltação da música renascentista de Orlando di Lasso como algo “correto” e ser escutado e as “boas maneiras” que Helmut obriga norma a adotar.
Massacrada pela sociedade, representando o lado passivo da História e vampirizada pelo esposo, a protagonista ainda terá o seu último infortúnio vindo de Deus… imaginem só. Quando recebe alta do hospital após o acidente, ela ouve do médico que “quando Deus quer uma coisa, homem nenhum pode mudar“. Não bastasse todo o sofrimento infligido pelo homem, Martha agora está paralítica pela vontade de Deus.
Juntamente com Michael Ballhaus, fotógrafo com quem trabalhou em 16 filmes, de Whity (1971) a Lili Marlene (1981), Fassbinder construiu em Martha um de seus melhores exercícios de decupagem, dando enorme atenção para a profundidade de campo e preparando os planos para que a história tivesse um padrão imagético diferente dependendo de qual ponto de vista estivéssemos olhando, se de Martha ou de Helmut. O cenário de cores frias e fortes faz o seu papel na construção de uma atmosfera opressiva, quebrada com os planos externos e os do hospital, pelo menos em termos de cores, porque o diretor sempre dá um jeito enquadrar Margit Carstensen em um quadro dentro do quadro, como se sua personagem estivesse irremediavelmente presa — constatação mais que real no término do filme.
Talvez um pouco teatral demais para o tema que explora — embora eu reconheça que esse esse ponto pode não ser algo negativo para outros espectadores — Martha é um filme sobre um casal condenado, um espelho de uma relação histórico-social cujo objeto refletido jamais se curou de sua doença primária, que é querer dominar o máximo possível através do medo refinado e de uma disfarçada opressão.
Martha (Alemanha Ocidental, 1974)
Direção: Rainer Werner Fassbinder
Roteiro: Rainer Werner Fassbinder (baseado na obra de Cornell Woolrich)
Elenco: Margit Carstensen, Karlheinz Böhm, Barbara Valentin, Peter Chatel, Gisela Fackeldey, Adrian Hoven, Ortrud Beginnen, Wolfgang Schenck, Günter Lamprecht, El Hedi ben Salem, Rudolf Lenz, Kurt Raab, Elma Karlowa, Heide Simon, Lilo Pempeit
Duração: 116 min.