Maria Callas é o terceiro retrato cinematográfico de uma figura feminina famosa que o diretor Pablo Larraín construiu, encerrando sua trilogia de mulheres poderosas e trágicas, ou, como parece ser a denominação oficiosa do projeto, a “trilogia das mulheres de salto” (um nome horroroso, por sinal). Seguindo os passos de recorte específico para local e tempo, como fez em Jackie (2016) e Spencer (2021), o diretor ambienta o longa na semana anterior à morte da chamada “maior cantora de ópera do mundo“, exibindo sua fragilidade vocal, a fraqueza de seu corpo, o vício em remédios e as alucinações. Estas são utilizadas como recurso narrativo e formal na fita, também abrindo as portas para momentos de memória, que são representados em preto e branco.
O ponto da trilogia é mostrar como mulheres com tanta fama e poder ainda podem se ver presas em complexas relações íntimas, muitas vezes impostas por circunstâncias da vida e expectativas sociais. A escolha de Maria Callas, como tema, oferece um terreno fértil para explorar a fragilidade por trás de uma persona pública que, a despeito da fama, não é tão conhecida ou mesmo tão relacionável quanto as outras duas mulheres que o diretor cinebiografou, ambas ligadas a agitados cenários políticos e familiares. Aqui, temos uma diva representante de uma arte pouco acessível e até pouco comentada na mídia de massas, o que já oferece um fator de afastamento. E, para além disso, este é o mais isolado, solitário e talvez antipático filme da trilogia, muito por conta da personalidade colossal de La Callas, seu desejo de ser adorada e sua atmosfera de “torre de marfim”, dando-lhe um patamar bem diferente do que tivemos nos filmes anteriores.
Não que esses elementos sejam, em si mesmos, um problema na cinebiografia. Creio que qualquer representação de uma grande diva acabaria tendo o mesmo “problema”. Minha análise da questão é a mais pragmática possível: considerar esses aspectos e a maneira como um filme pensado inteiramente para destacar uma mulher-ícone certamente teria mais dificuldade de ligação com o público se a protagonista não constasse no imaginário popular de forma reiterada. E também se sua postura fosse majoritariamente marcada pelo isolamento. O filme, ambientado na Paris de 1977, nos faz encontrar essa personalidade tão peculiar num momento ainda mais difícil da vida, enfrentando decadência vocal, ao mesmo tempo que alimenta o desejo de retornar aos palcos.
Através de flashbacks, Larraín nos transporta para momentos cruciais da soprano absoluto, costurando um mosaico de memórias que revelam a complexidade de sua vida pessoal e profissional, se esforçando para imergir o espectador na psique turbulenta de Maria Callas, confundindo as linhas entre realidade e fantasia. Para mim, foi uma abordagem inesperada e interessantíssima, a princípio. Nas primeiras trocas entre o presente e o passado (divididos por uma bela fotografia saturada e carregada em tons próximos ao sépia, no presente; e em escala de cinza, no passado), a escolha transmite uma mensagem de elegância, fazendo jus à esperada aparência do mundo operístico. Contudo, a repetição desse recurso, assim como as trocas cada vez mais forçadas entre realidade e alucinação, vão dando à fita um ar de pastiche que diminui consideravelmente o seu valor. Não creio que isso, no fim das contas, faça desse desfecho da trilogia um projeto ruim, mas ele certamente é diminuído por essas manias estéticas que, em uso comedido, nos fazem entendê-las como estilo. Já em uso exagerado, torna-se pura vontade de parecer clássico a todo custo.
Melhor construção se vê na atuação de Angelina Jolie, como Maria Callas. A atriz entrega uma representação sensível, introspectiva e impetuosa, do jeito mais controlado possível, fazendo dessa performance a melhor de sua carreira, superando papéis icônicos que ela teve, como em Garota Interrompida e A Troca. Capturando a dor e a vulnerabilidade da diva em seus momentos finais, a atriz transmite uma gama de emoções sem precisar lançar mão de uma postura histriônica, sustentando com muita competência a face plácida da cantora, inclusive nas cenas de grande emoção. O maior problema está na dublagem das cenas principais. Apesar da afirmação da atriz de que ela realmente cantou nas sequências de ensaio e apresentações domésticas, a evidente dublagem das cenas teatrais (com destaque para a abertura do filme) é imensamente incômoda e cria um distanciamento inicial que não precisaria acontecer, se Larraín fosse um tanto mais criterioso na direção desses momentos e na orientação para a montagem das cenas.
Dizer que este filme é “frio” pode ser uma definição justa para muitos espectadores. Talvez haja alguma contestação ao levar em conta os blocos de felicidade, mas todos entenderão de onde vem a palavra. Apesar da ambição narrativa e de conseguir bastante coisa com a abordagem estética no primeiro ato, a obra carece de uma faísca a mais, de um elemento que verdadeiramente conecte o público à alma da protagonista no decorrer de toda a obra, não apenas pontualmente. A citada “frieza” da produção e, por tabela, da personagem, majoritariamente perdida em seus delírios medicamentosos, a torna praticamente inacessível. A sensação é de que o filme se limita a observar Callas à distância, sem assumir responsabilidade dramática, a despeito das cenas mais honestas da diva com Onassis (Haluk Bilginer) e das confidências feitas a Mandrax (Kodi Smit-McPhee), o seu entrevistador mental.
A película nos traz grande melancolia ao acompanhar uma artista em seus últimos dias de vida, ansiando por momentos melhores. Há um uso correto, embora não necessariamente primoroso, de árias famosas e momentos exclusivamente musicais de Callas no palco; além de um ótimo trabalho de figurinos — esta, aliás, é a minha área técnica favorita do filme. Ao encerrar os estudos sobre “mulheres de salto”, Larraín reforça o seu já conhecido discurso sobre a complexidade da vida de uma figura pública feminina, cercando os seus obstáculos recorrentes, o papel de homens (também poderosos) em suas vidas e a forma como obrigações sociais, aparências e regras familiares são priorizadas, em detrimento da própria vontade ou saúde física e mental da vítima. Em outras palavras, ele entrega um fechamento triste. Em sua tese, o poder da figura pública não dá a ela escudos para se defender de tudo, e, por mais que a mulher poderosa enfrente, domine e brilhe nos palcos, nos holofotes, nas páginas e nas telas, sempre haverá algum lugar onde ela será tão pequena e tão suscetível quanto qualquer pessoa comum. À guisa de esperança, o cineasta mostra que a memória sobre a diva suplantará os seus dissabores pessoais, entrando para a História apenas o glamour e o poder. Nesses casos, o sofrimento é particular. O isolamento existe. Mas não se torna o definidor de um legado.
Maria Callas (Maria) — Itália, Alemanha, EUA, 2024
Direção: Pablo Larraín
Roteiro: Steven Knight
Elenco: Angelina Jolie, Valeria Golino, Kodi Smit-McPhee, Alba Rohrwacher, Haluk Bilginer, Pierfrancesco Favino, Caspar Phillipson, Aggelina Papadopoulou, Rebecka Johnston, Vincent Macaigne, Paul Spera, Christiana Aloneftis, Stephen Ashfield, Jeremy Wheeler
Duração: 124 min.