Negue a técnica, pois o cinema, tal qual a América, ainda não foi descoberto, diz o mestre do cinema experimental Stan Brakhage. O autor americano defende um cinema que se solte de quaisquer amarras visuais ou narrativas, criando, assim, uma nova percepção ou visão nunca antes produzida. Brakhage vai além e diz que a visão do artista, assim como a do santo, é capaz de imaginar o algo além; as visões oníricas, portanto, devem ser tão ou mais respeitadas que a própria linguagem mais próxima do real. E se um artista conseguir se conectar com suas essências divinas e, ao mesmo tempo, realizar algo cinematográfico? É isso que o realizador indígena Morzaniel Iramari Yanomami propõe em sua radical experimentação chamada Mãri-Hi: A árvore do sonho. Nele, embarcamos em um viagem só de ida até a tribo de Morzaniel, onde também encontramos imagens oníricas unicamente experienciadas por meio da mediação visual da câmera cinematográfica.
Antes de qualquer recorte, cabe dizer que as imagens captadas por Morzaniel, que também assina a direção de fotografia do filme, são absolutamente impecáveis, sejam elas de cunho realista ou mais metafísico. São recortes que, na verdade, estão diretamente ligados à relação que o povo Yanomami estabelece com o sonho – que, segundo o curta-metragem, pode inclusive extrapolar as barreiras do sono. O filósofo Frantz Fanon, por exemplo, diz que no mundo colonial o indígena aprende, antes de qualquer coisa, a não extrapolar seus limites sociais; cabe, dessa maneira, ao sonho ser libertador: sonhos musculares, sonhos de ação. Os sonhos capturados pela câmera de Morzaniel são, antes de qualquer coisa, registros da resistência onírica proposta pela relação íntima de sua tribo com o inconsciente. Sonhar é sinônimo de resistir, de existir – é o sonho que liberta aquele que, devido a relações histórico-sociais, não têm sua existência garantida como direito. O colonizador, como sempre, serve apenas para tentar destruir a vida do povo indígena: se a relação dos yanomami com a natureza (e com uma árvore específica) cria o sonho libertador, o homem branco surge e, sem pudor algum, tira das mãos dos povos originários a natureza que o pertence. A relação íntima de Mãri-Hi com sua essência divina é um ato de resistência, um grito de liberdade realizado diretamente de sua fonte. É uma imagem cinematográfica que tira de si quaisquer padrões precedentes e, como fala Brakhage, aproxima-se de Deus.
O curta-metragem documental de Morzaniel não apenas dá ao espectador, em sua maioria branco, uma noção do diálogo entre sua religião e o sonho como também os joga dentro da fonte de maior intersecção entre os dois planos: a natureza. Em seus respiros mais experimentais o filme abusa da luminosidade natural, transformando-a em um forte clarão que parece cegar o público, como que afirmando que essa visão não nos pertence. A beleza intrínseca à floresta brasileira só nos é entregue rapidamente, logo depois a luz invade a mise en scène e apresenta esse distanciamento. Nós não somos capazes de enxergar a totalidade da natureza, falta-nos chegar além, algo que para o povo yanomami é parte do cotidiano. Mãri-Hi parece, antes de qualquer coisa, demarcar aquilo que não pertence ao espectador de fora da tribo. Só somos capazes de ver e compreender aquilo que o diretor quer. As gravações de maior realismo nos são concedidas, mas tudo que transpassa esse limite é aquilo que não conseguimos ver. Talvez, a luz, que para nós é cegante em alguns momentos, para Morzaniel é uma total libertação sensorial permitida pela relação de seu povo com a natureza e o divino. A câmera, aqui, toma uma posição xamânica, decidindo o que podemos acessar enquanto civilização externa.
A multiplicidade das experimentações do diretor é facilmente notada como um dos pontos mais radicais do filme. Em dado momento, inclusive, há uma tensão direta entre planos formalmente clássicos e outros beirando maior experimentalismo: somos apresentados a pés dançando e, logo depois, distorções de lente seguida de superexposição da imagem criam esse fortuito embate entre o visível e o onírico. O trânsito entre o olhar comum e a libertação do ver é, também, o que estabelece com maior certeza a integração metafísica de Morzaniel e sua tribo com a natureza. É por meio dela que ele e seu povo alcançam novos níveis de percepção. A encenação composta em Mãri-Hi pouco se entrega a regras formais; o desequilíbrio, o erro, o caminho errante, aqui, são abraçados. O reino dos sonhos quase nunca é certeiro, fazendo o sonhador vaguear, errante, por diversos caminhos nunca antes imaginados. E é esse um dos grandes trunfos do curta aqui analisado: abraçar todo o caos onírico em prol de sua linguagem experimental.
Mãri-Hi é mais do que um simples curta-metragem documental com nuances experimentais. É um modo de fazer cinema especificamente yanomami. A captação dessa potência metafísica só é possível porque um indivíduo pertencente à tribo realizou tais experimentos. Ninguém fora desse núcleo social seria capaz de atingir os limites aqui estabelecidos pelo diretor. É um filme yanomami. É um filme que só existe por causa dessa tribo e, principalmente, pelo espírito indomável de Morzaniel Iramari Yanomami.
Mãri Hi – A Árvore do Sonho – BRASIL, 2023
Direção: Morzaniel Iramari Yanomami
Elenco: David Kopenawa Yanomami
Duração: 17 min.