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Crítica | Marca Registrada

Made in Brazil.

por Frederico Franco
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Brasil, 1975; Ditadura militar em curso: uma tônica na América Latina; Cinema como instrumento de resistência; Experimentalismo(s). O contexto conturbado no qual se via envolvida Letícia Parente, definitivamente, moldou não somente sua personalidade, mas seu trabalho estético. Baiana de nascimento, Parente ousou no cenário artístico brasileiro ao ser uma das primeiras artistas a trabalhar com a videoarte no país, em parceria com Anna Bella Geiger. Seguiu à risca, também, o posterior enunciado de seu filho, André: não limitar a criatividade a limites financeiros – mesmo polêmica e com ausência de materialismo histórico, a afirmação se aplica no contexto da videoartista. A obra audiovisual de Parente não possui grande volume, mas, por outro lado, é de um brilho raro, de uma potência quase nunca vista ao longo da história do cinema realizado em terra brasilis. Utilizando-se do (próprio) corpo e do espaço doméstico comum como objeto de registro videográfico, Letícia Parente abre franco diálogo com os mais diversos ramos do experimentalismo nas artes (audio)visuais. 

Marca registrada é, talvez, a obra mais celebrada de sua carreira enquanto videoartista. Com dez minutos de duração, a película apresenta uma mulher usando um longo vestido sentada em uma cadeira feita de madeira. A protagonista, a própria Letícia, levanta seu pé e, então, mostrando a sola em close up, inicia a bordar algo nele. O que é bordado? No princípio, não se compreende exatamente, mas letras são identificadas. No topo do pé, um “M”, “A”, “D” e um “E”. O vídeo segue e, no meio do pé, apenas duas letras: “I” e “N”. Ao final dos angustiantes dez minutos, próximo do calcanhar, a palavra “BRAZIL” – assim mesmo, americanizada – é bordada. “Made in Brazil“. Feito no Brasil. Um vocábulo comum em produtos, brinquedos, etc. Corpo como mercadoria. Corpo como objeto inanimado, possuindo preço, prazo de validade, utilidade, obsolescência programada. O corpo capitalista. Na agressiva capitalista, tudo é objeto. O corpo humano torna-se uma máquina designada para funções específicas. Parente agride o espectador com essa verdade, muitas vezes, dura de engolir: que existe um processo de coisificação do ser humano inerente ao sistema capitalista. A dolorosa costura de Letícia Parente em si mesma é o traço fundamental da própria sociedade da positividade que Byung Chul-Han descreve em A sociedade do cansaço. Nela, o trabalhador, através do reforço por meio da violência do positivo, coloca em si mesmo o desejo e a obrigação de se tornar um objeto capaz de satisfazer os desejos do patrão. A diretora, então, costura na própria pele seu destino coisificado.

A insistência da visão na automutilação cria uma relação de completa agressão entre vídeo e espectador. Cada mínimo frame da obra acaba sendo um martírio para os olhos do público. Tudo é dolorido, não existe prazer nessa dinâmica. É “feito no Brasil”. A existência brasileira é dolorosa e, portanto, Parente não esconde suas dores e muito menos suas angústias em ser Brasil em tempos de vídeo. Assumir a herança do subdesenvolvimento – e, portanto, da violência, pois não há subdesenvolvimento sem relações de agressão – como Ferreira Gullar e Hélio Oiticica já haviam postulado é compreender a dura realidade e, a partir daí, construir vanguarda, arte de guerrilha. O pesar de ser brasileiro ao longo da ditadura empresarial-militar é refletido em dez angustiantes minutos de vídeo. As agressões à classe trabalhadora brasileira são expostas pela agressão ao corpo, ao físico, mas também ao modo de expressão de Parente; o plano único, estático, cínico, é uma estrutura de agressão. É uma dupla materialização da violência.

“Arte corporal, arte muscular. […] O corpo contra a máquina. No caso brasileiro, o importante é fazer da miséria, do subdesenvolvimento, nossa principal riqueza”. É o crítico de arte e teórico Frederico Morais quem propõe ao cenário brasileiro setentista um estilo artístico que priorize o corpo, o gesto, o muscular e o visceral. Em Marca registrada Letícia Parente usa seu corpo como canal de uma mensagem. Da maneira mais forte possível: transformando-o e o agredindo. A costura é lenta, calma, mas agressiva aos olhos. A dor de Parente pode não estar exposta, mas está subentendida. É um corpo experienciando algo, similar à tradição de Warhol e Bas Jan Ader: alguém, ou parte de alguém, e uma ação. No caso da videoartista brasileira, é uma experiência penosa. É experimentalismo às últimas consequências, é a tradução física daquilo que Noel Burch chama de estruturas de agressão. Marca registrada é um recorte de seu tempo. É um vagalume, uma mutilação de valores normativos do cinema. É uma performance? Body art? O princípio regente, aqui, não é categorizar, é transformar sentimentos em palavras, ou seja, um exercício de utopia. Ao contrário deste que vos escreve, Letícia Parente, essa sim, consegue realizar uma tradução intersemiótica dos medos, angústias e violências de seu tempo em imagens. Marca registrada é mais do que uma obra em vídeo: é uma obra made in Brasil – agora, sim, com a grafia correta.

Marca Registrada – Brasil, 1975
Direção: Letícia Parente
Elenco: Letícia Parente
Duração: 10 min.

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