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Crítica | Mar de Rosas (1977)

por Laisa Lima
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Manter uma vida a dois é um dualismo. Ao mesmo tempo que o aproveitamento de tal conjuntura é obtido por meio de um possível sentimento de amor, os ajustes necessários entre as personalidades e os gostos dos envolvidos pode não chegar a um denominador comum. Foi assim em História de Um Casamento (2019) e Foi Apenas um Sonho (2009), por exemplo. Inúmeros enredos mostram a beleza e o infortúnio de uma união – principalmente matrimonial – , mas, em Mar de Rosas (1977), o foco parte de uma medida extrema até o conhecimento das consequências de um casamento mal concebido para uma mulher.

Com um nome que se torna referência como uma das palavras que não representam a aura do filme, Felicidade (Norma Bengell) transforma-se em fugitiva após agredir o marido portando uma navalha no banheiro de um hotel. Ela e a filha Betinha (Cristina Pereira) seguem sozinhas para São Paulo, o destino final que, para chegar até ele, terá de ser ultrapassado o desgaste e o esgotamento do convívio entre mãe e filha, e os demais adicionados no caminho. Este caminho, aliás, não será apenas uma reta (em todos os sentidos). As tortuosas curvas da estrada partida do Rio de Janeiro vão agregando não só novos participantes ao longa-metragem, mas também novas emoções para serem carregadas pelos protagonistas. 

Felicidade é uma incógnita. Com um notório histórico de repressão e agressão por parte do marido Sérgio (Hugo Carvana), como visto na primeira cena do filme, a personagem continua reprimida por um bom tempo, acanhada para expressar o que quer e agir da maneira que quiser. As marcas deixadas pelo casório visivelmente disfuncional culminam em seu temperamento e nas ações impulsivas mas há muito tempo guardadas, tal qual o ataque ao esposo. O fato da película se passar quase toda em ambientes fechados (carro, casa, e afins) restringe tanto as atitudes da moça quanto a liberdade do próprio espectador, confinado na inquietação presente nos sentimentos confusos de Felicidade, que parece desnorteada sem ter alguém ao seu lado e desacostumada a viver sozinha, somente com a filha. E pouco se assemelha a uma relação afetuosa aquilo que as duas compartilham. 

O modo com que Betinha se comporta não condiz com seu suposto estágio da vida, provavelmente a adolescência. Esta é uma provável razão do incômodo não só do público com suas constantes peripécias, mas principalmente de Felicidade, que a tem como um fardo. A falta de comunicação e até afinidade de ambas se expõe em suas opostas formas de pensar: enquanto Betinha é despreocupada diante do julgamento alheio, Felicidade traz um enorme pesar em suas costas. Entretanto, as poucas vezes que as personagens se falam com o mínimo de educação envolve Orlando (Otávio Augusto) e a desconfiança que elas detém sobre o caráter do inicialmente desconhecido, que revela-se o arquétipo dominador do sexo masculino. Sendo o homem com maior tempo em tela, Orlando auxilia no encaminhamento da história para um viés mais abusivo e até enigmático, com isto explicitado no tratamento do personagem para com Felicidade e Betinha, e nos acontecimentos seguintes.

A trilha sonora que acompanha tais ocorrências não ditam o que é Mar de Rosas. São raros os momentos que as músicas, por vezes erroneamente coincidentes com Os Trapalhões e por vezes em uma excessiva dramaticidade composta por uma orquestra quase fúnebre, são compatíveis com as cenas. Apesar disso, ao passar do tempo, uma identificação com algumas melodias que beiram o recreativo se encaixam bem no rumo irreal que o longa-metragem toma, embora não haja motivo de riso. Diálogos em que claramente são perceptíveis os ideais que o filme quer transmitir são propagados, em sua maioria, por mulheres se dirigindo a um ápice de exaustão, por culpa majoritariamente do regramento do quê um indivíduo do sexo feminino pode aguentar em nome da preservação do contentamento de seu parceiro. Na obra, reproduções machistas são ditas a todo momento, e conforme a surrealidade nas situações e nas ações dos personagens vão acontecendo, é árduo acreditar nelas.

Ana Carolina, diretora de Mar de Rosas, seu primeiro filme, parece estar e não estar em contato com a realidade. Nos enquadramentos dos rostos em formato 3×4 dentro dos veículos e no uso de uma câmera amadora, a cineasta se conecta com a factualidade essencial para a réplica de discursos feitos por mulheres fora do cinema nos anos 70. Por outro lado, ao libertar tanto o longa-metragem em seu decorrer, assim como desejava libertar suas personagens, o trabalho de Ana cai em um tom bagunçado e em uma confusão de anseios soltos. O bom roteiro, notado inclusive em pertinentes monólogos e na diferença de conversa entre mulheres e outras entre homens, se transmuta a uma desordem de ocasiões sem sentido, ainda amparada pela já referida trilha sonora, igualmente sem sentido.  

Mar de Rosas acaba eventualmente não sendo um “mar de rosas” para se assistir. A digestão da obra, embora entendível por meio de uma ideia oportuna de tradução da repressão feminina, faz-se ambígua a sensação de ter iniciado um filme e terminado outro. Isto porque a dissonância em colocar uma condição fantasiosa na seriedade do real – ainda mais em uma pauta tão emergencial –  em poucas oportunidades surte o efeito pretendido. Ainda assim, o longa-metragem é forte o suficiente para que a mensagem, originada de uma mulher e sobre outra mulher, seja recebida pelo público. A jornada da descoberta da infelicidade de Felicidade comove, com a assistência do bom elenco e do bom roteiro, limitado mas ajustado com as recorrências do sexo feminino. Então, se for levado em conta a importância de um trabalho abertamente contra as normas do casamento e dos olhares machistas, e a favor da independência emocional e estrutural da mulher, isso em 1977,  Mar de Rosas poderá, mesmo com falhas, ser lembrado fortemente. 

Mar de Rosas (Mar de Rosas – Brasil, 1977)
Direção: Ana Carolina
Roteiro: Ana Carolina, Isabel Câmara
Elenco: Norma Bengell, Cristina Pereira, Hugo Carvana, Otávio Augusto, Ary Fontoura, Maria Sílvia
Duração: 99 min.

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